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Reportagens Especiais

Sobre rodas, morte arrastou vidas e deixou rastro de dor e indignação

Relato de mãe em luto é exemplo do que a imprudência causou no trânsito de Campo Grande

Por Silvia Frias | 28/12/2023 06:50
Campo Grande News - Conteúdo de Verdade
Silma Leal mostra a camisa com foto do filho, morto em acidente em 2023 (Foto: Henrique Kawaminami)
Silma Leal mostra a camisa com foto do filho, morto em acidente em 2023 (Foto: Henrique Kawaminami)

Dois dias depois de sepultar o filho de 22 anos, a manicure Silma Leal Venâncio, 42 anos, falou com o Campo Grande News. A abordagem de parentes de vítimas de morte violenta é sempre difícil e delicada, mas que faz parte do cotidiano das redações: um caso particular, mas que representa contexto que atinge a muitos e se torna tema de reportagem.

No caso de Silma, o primeiro contato já havia ocorrido na porta do hospital, quando a equipe foi em busca de familiares e informações do estado de saúde de Lucas Daniel Venâncio Dutra, vítima de acidente automobilístico, no dia 21 de maio.

O rapaz foi vítima de “epidemia”, que, há anos, desafia o sistema público em várias esferas: a morte por acidente de trânsito que, em 2023, foi responsável por 56 mortes, somente em Campo Grande, segundo dados da Agetran (Agência Municipal de Trânsito) até dia 15 de dezembro. Deste total, 39 foram de motociclistas, como Lucas.

Na tristeza, sopro de alegria ao saber que os olhos de Lucas vão ver "as maravilhas do mundo" (Foto: Henrique Kawaminami)
Na tristeza, sopro de alegria ao saber que os olhos de Lucas vão ver "as maravilhas do mundo" (Foto: Henrique Kawaminami)

Lucas Daniel Venâncio Dutra entrou na estatística na madrugada do dia 21 de junho, um mês após ter sido internado na UTI da Santa Casa. O rapaz estava de moto Honda Fan quando aconteceu acidente, envolvendo Chevrolet Tracker.

Conforme o boletim de ocorrência registrado na Depac/Cepol (Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário), os dois veículos estavam na Avenida Afonso Pena, no cruzamento com a Ernesto Geisel, quando a Tracker iniciou a conversão à direta e atingiu a moto. O rapaz sofreu traumatismo craniano e diversas fraturas na bacia e no fêmur, sendo mantido em coma induzido, intubado, com inchaço no cérebro.

Naquele dia, a família entrou em contato com a redação, indignada pelo fato de o condutor ter sido liberado para responder pelo caso em liberdade. Na casa da irmã, no Portal Caiobá, a manicure falou por cerca de 1h, em relato feito à repórter Mariely Barros e escrito por mim.

Na rotina de portal de notícias, nem sempre as mãos que escrevem são da mesma pessoa dos olhos que testemunham o fato. O trabalho em conjunto ajuda a agilizar a postagem da notícia. Mas uma história pode ser marcante, mesmo nesses moldes. Mariely descreveu ambiente tomado pela dor e pela indignação, onde as palavras tinham as pausas de quem tenta se recompor a cada lembrança.

Dois detalhes chamaram atenção, em especial: o toque do despertador, às 9h30, lembrete que foi usado durante um mês, para que Silma se arrumasse para visitar o filho no hospital. O outro foi o sorriso discreto, mas cheio de brandura, ao dizer que doou as córneas de Lucas, para que ele continuasse a “ver as maravilhas do mundo”. Uma fração de segundo que foi capturada pelas lentes do repórter fotográfico Henrique Kawaminami e traduziu o momento melhor do que qualquer palavra.

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Rotina – Não há um dia que o Campo Grande News não receba informação da ocorrência de um acidente. E todos os dias a equipe se desloca para noticiar, pelo transtorno que causa no trânsito ou pela gravidade, com danos materiais ou o pior dos cenários: o pano branco cobrindo o corpo e os parentes desesperados, pelo choque da perda abrupta.

Já em janeiro, uma menina de 7 anos andava de bicicleta e foi atropelada por caminhão-baú na Rua Major Giovani Francisco Nadalin, no Bairro José Tavares do Couto. Os moradores aproveitaram para reivindicar redutores de velocidade no local que sempre foi “pista de corrida”.

No dia 13, as imagens de câmera de segurança flagraram o atropelamento e morte de Luís Gustavo Biazzi Tomicha, 21 anos, no Bairro Santa Emília. O condutor fugiu e depois da divulgação das imagens o veículo foi encontrado uma semana depois, guardado em garagem, sob cobertor. O motorista se apresentou à polícia, sendo indiciado por homicídio doloso, dirigir sem CNH e não prestar socorro à vítima.

Carro foi encontrado uma semana depois de acidente com morte (Foto/Arquivo)
Carro foi encontrado uma semana depois de acidente com morte (Foto/Arquivo)

Carro que atropelou e matou rapaz é achado escondido sob coberta em quitinete.

Em março, o exemplo da situação mais comum no trânsito de Campo Grande este ano, que registrou 39 mortes de motociclistas. Um deles foi Florêncio Luiz Figueiredo, 54 anos, em colisão envolvendo outra moto e um caminhão, na Avenida das Bandeiras.

Homem morre após colisão entre motos na Avenida das Bandeiras

Naquele mês, vale o registro de acidente que não aconteceu em área urbana, mas na BR-163, ainda em Campo Grande, tendo causado grande comoção. Foram as mortes de quatro amigas, de 28 a 29 anos, a caminho de fim de semana de lazer, em Rio Verde. O carro em que elas estavam foi atingido após tentativa de ultrapassagem. Outra ocupante do carro foi a única sobrevivente da tragédia.

Amigas mortas em acidente iriam passear em Rio Verde

Letícia, Carolina, Laís e Kaena morreram em grave acidente. (Foto: Redes sociais)
Letícia, Carolina, Laís e Kaena morreram em grave acidente. (Foto: Redes sociais)

Também na BR-163, em Sonora, ainda em março, casal e a filha de 5 anos morreu quando o carro deles se envolveu em colisão frontal com caminhão carregado de milho. O veículo deles ficou completamente destruído.

Em Campo Grande, os registros de mortes, principalmente envolvendo motociclistas, continuaram. No Bairro Nova Lima, Sulivan Pietro da Silva, 22 anos, acabou esmagado em acidente com carreta na Avenida Abrão Anache. O rapaz ainda estava em processo para retirar a CNH.

No Monte Castelo, em maio, o serralheiro Valdecir Ferreira da Silva, 57 anos, morreu ao fazer retorno na pista. O impacto foi tão grande que a motocicleta da vítima foi arremessada a aproximadamente 100 metros de distância.

No mês seguinte, um caso chamou atenção pela imprudência. A técnica de enfermagem Gilmara da Silva Canhete Baldo Bernardo morreu após ter tentado fazer conversão à esquerda na Rua Ceará e ser atingida por Tânia Barbosa Franco de Araújo Nogueira. A condutora foi flagrada logo após, em visível estado de embriaguez.

Vídeo mostra motorista bêbada após atropelar e matar técnica de enfermagem


Mais motociclistas morreram naquele período, entre eles, na colisão frontal com outra moto e caso em que o condutor bateu em placa de sinalização, um adolescente de 17 anos.

Outro acidente chamou atenção pela sequência infeliz. Myrian Lemes Torquato tentou fazer ultrapassagem pela direta e acabou sendo surpreendida pelo condutor de Creta, que abriu a porta naquele momento. A moça de 22 anos, que estava a caminho do trabalho, se desequilibrou, caiu e foi atropelada pela carreta que passava, naquele momento, na Rua Cacildo Arantes, no Bairro Chácara Cachoeira. O condutor do Creta foi indiciado por homicídio culposo (sem intenção de matar).

Motorista que abriu a porta e atingiu motociclista será indiciado por homicídio

No chão, mãe de Miryan é amparada por policiais no local do acidente. (Foto: Marcos Maluf)
No chão, mãe de Miryan é amparada por policiais no local do acidente. (Foto: Marcos Maluf)

O segundo semestre do ano manteve as trágicas ocorrências, principalmente com motociclistas. Na Avenida Guaicurus, Atilio Arantes foi a ponta frágil de acidente que envolveu a moto dele, carro de passeio e caminhão-baú. Ele bateu na traseira do caminhão, invadiu pista contrária e foi atingido pelo carro.

Acidente envolvendo três veículos mata motociclista na Avenida Guaicurus

Em setembro, José Roberto Pereira de Souza Carvalho, 21 anos, era passageiro de moto atingida por condutor bêbado, que transitava com S10 na Avenida Cônsul Assaf Trad, no Bairro Coronel Antonino. À polícia, testemunha que passava pelo local disse que o condutor da caminhonete teria mudado de faixa repentinamente.

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No registro dos casos, a violência das colisões choca, como o carro reduzido a carcaça esmagada no acidente envolvendo duas carretas, que ainda pegaram fogo.

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Militares dos bombeiros e veículos destruídos após acidente. (Foto: Idaicy Solano)
Militares dos bombeiros e veículos destruídos após acidente. (Foto: Idaicy Solano)

Em novembro, motorista sem habilitação atropelou e matou Renilda Aparecida Paim da Silva, 62 anos, na Rua Santo Augusto, no Jardim Vida Nova. A condutora, Ana Paula da Silva Giacomeli, foi presa em flagrante por homicídio culposo, sendo liberada após pagar fiança.

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Em dezembro, mais uma morte sobre duas rodas: a auxiliar de cozinha Belquis Maidana, 51 anos, morreu no cruzamento das ruas Antônio Maria Coelho e Bahia, a caminho do trabalho. A moto conduzida pelo marido dela, João Paulo Alves, 43 anos, foi atingida por Guilherme Pimentel, que usava carro oficial do governo estadual. O servidor foi exonerado após o acidente e indiciado por homicídio.

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Familiares no velório de Belquis, morta em acidente no cruzamento da Rua Bahia com a Antônio Maria Coelho (Foto: Marcos Maluf)
Familiares no velório de Belquis, morta em acidente no cruzamento da Rua Bahia com a Antônio Maria Coelho (Foto: Marcos Maluf)

No dia 24 de dezembro, véspera de Natal, mais uma morte: Ingrid da Silva Fernandes, de 22 anos, morreu após ser atingida por um veículo modelo Gol que furou o sinal vermelho, no cruzamento da Rua Pontalina com Avenida Guaicurus, no Bairro Universitário.

Segundo o registro da ocorrência, uma testemunha contou à polícia que o motorista do carro fugiu do local e se escondeu em um prédio que tem próximo. Em seguida, retornou acompanhado do pai e do irmão, este que ainda tentou dar "carteirada", dizendo que era "advogado de político".

Condutor de Gol fura sinal, atinge moto e mata passageira

Em entrevista ao Campo Grande News este ano, o diretor-presidente da Agetran, Janine de Lima Bruno, disse que houve queda nos índices em relação a 2022, quando 76 pessoas morreram no trânsito. A redução atual é atribuída ao fruto de planejamento do GGIT (Gabinete de Gestão Integrada de Trânsito).

“O grupo acompanha e estuda o ‘porquê’ de o acidente em determinado lugar. Por exemplo, a dinâmica do acidente com vítima de trânsito em via reta, plana, de dia e sem chuva. Todo um estudo é feito e podemos saber o local e o horário em que os acidentes estão acontecendo. A parte de engenharia junta esses números e dados para uma tomada de decisão, saber qual intervenção será feita."

Para os familiares e amigos, este será o primeiro Natal sem a presença das pessoas que entraram para a triste estatística. Para os que choram as vítimas, só resta o pesar. Como disse Silma Leal disse, em entrevista, a ela só restava "aprender a conviver com a dor".

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