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A fotografia na era de sua reprodutibilidade digital

Por Joel de La Laina Sene (*) | 01/03/2017 09:37

Na atualidade, a fotografia ou, melhor dizendo, os discursos fotográficos passam por um processo semelhante àquele que a pintura ou a obra de arte também atravessaram, quando do surgimento e difusão dos processos mecânicos de obtenção de imagens.

O problema não é novo, mas está longe de ter sido bem encaminhado. Trata-se de redimensionar a linguagem fotográfica à luz das fundamentais alterações implantadas pelo processo eletrônico e as matrizes digitais.

A fotografia estática vem passando por pressões que ora a encaminham para rumos que a afastam dos princípios que propiciaram seu desenvolvimento, ora redefinem seu papel no fluxo transdisciplinar das mídias contemporâneas.

A fotografia tal como era praticada no século 19 e em seu pleno desenvolvimento no século 20 ainda é ativa e reconhecida como linguagem documental, autoral e expressiva.

Quer dizer que ela atua como indicador de memória de um instante passado, como reflexão filtrada através do dispositivo, e, em última instância, como um discurso poético. Esse artifício permite às fotografias processos reflexivos simultâneos.

As duas dimensões simulam três; assim como na dimensão temporal o passado é presentificado, no instante em que a fotografia impressa é observada leva o observador a divagar por território a ser construído e, portanto, em um devaneio prestes a ser cristalizado no futuro.

Com o advento das imagens chamadas digitais criou-se o termo “pós-fotografia”. Há nessa expressão uma espécie de marcador ou divisor de águas. Como se o suporte concreto da fotografia analógica tivesse sido totalmente substituído por imagens virtuais, numéricas.

A fotografia está, no entanto, na base das chamadas imagens técnicas, ou imagens produzidas pela intermediação de aparelhos, a própria fotografia, o cinema, o vídeo analógico e mesmo o digital. Trata-se de perguntar: qual é o papel da fotografia na época de sua reprodutibilidade digital?

A fotografia, já no final do século 19, se estabelece como o modo preferido de comprovar presença e ilustrar acontecimentos no meio impresso. Como técnica que se vale de determinados aparelhos, como se sabe, não se alterou significativamente. Uma simples câmera escura ainda pode obter fotografias surpreendentes.

O desenvolvimento da indústria ótica teve no dispositivo fotográfico um terreno fértil de pesquisa e aplicações. Os materiais fotossensíveis e mesmo os equipamentos fotográficos chegaram a padrões que podemos considerar constantes, consolidados. A fotografia analógica, que se vale de um registro testemunhal e único — o fotógrafo esteve presente —, está atualmente sofrendo uma alteração drástica.

Walter Benjamim, em seu artigo sobre a fotografia e a reprodutibilidade técnica, já alertava para a diferença entre a unicidade da obra de arte e sua aura e a cópia fotográfica que pode ser reproduzida aos milhares, sempre guardando semelhança entre o original e as “obras repetidas”.

Hoje sabemos que a fotografia não usurpou da pintura o caráter documental, mesmo porque os documentos fotográficos vêm carregados de sinais de interpretação, e, pelo contrário, a fotografia ajudou a libertar as artes visuais, que desenvolveram suas características próprias. Podemos dizer que a fotografia dedicou-se tanto às ciências, que solicitam documentos objetivos, quanto às comunicações, que permitem alguma autoria, e mesmo à arte, onde a subversão do programa fotográfico, segundo Flusser, foi tarefa de artistas raros, mas persistentes.

Fotógrafos e pesquisadores da imagem vêm se deparando com o paradoxal impasse em que o ofício da fotografia se encontra na atualidade, numa época de reprodutibilidade digital. Na fotografia analógica podemos copiar (ampliar) um negativo muitas vezes e, ao editar a imagem em publicações impressas, as cópias se distribuem aos milhares.

Já na fotografia digital, uma mesma matriz, original de câmera, pode ser clonada praticamente ao infinito sem perda de qualidade. Torna-se inútil querer identificar a arte e autoria de uma imagem por sua primazia. Mesmo porque, na fotografia analógica, várias características de composição e de busca temática repetiram-se em algumas fórmulas desenvolvidas por pioneiros que, por sua vez, traziam consigo uma cultura imagética que não era necessariamente puramente fotográfica.

Onde se encontra o discurso inovador dos fotógrafos? Penso que é exatamente no vazio, no espaço entre as imagens, nas imagens que se formam no conjunto de sua composição. Assim, o fotógrafo é antes de tudo um editor.

Quando sai à caça de suas imagens, algumas são capturadas, outras fogem incólumes. De seu percurso alguns pontos são marcados. Podemos redesenhar o trajeto do fotógrafo no tempo e no espaço através da leitura das imagens ordenadas nas provas de contato.

Os cartões de memória também guardam a sequência desses pontos de passagem. O fotógrafo vai tentando decidir, conforme dispara o botão, quais são as posições, os enquadramentos e as cenas que quer registrar. Estar presente no ato fotográfico é o que o diferencia do espectador que, ao ver sua foto, recebe apenas uma entre várias.

Novamente o fotógrafo é editor ao selecionar uma imagem entre aquelas que se perderão ou que ficarão abandonadas nos arquivos. Um critério que motiva o editor em selecionar uma ou outra imagem, em geral, seria, como quer Cartier-Bresson, a pertinência daquela imagem em conter outras fotografias.

Uma imagem que sozinha conta uma história é um evento raro; muitas vezes torna-se necessário condensar um conjunto de imagens. Novamente atua o vazio. O espaço entre as imagens trata de encaminhar o leitor em um percurso previamente definido, mas deixa brechas para que a leitura possa ser construída com atividade e prazer.

É claro que os cortes cinematográficos e as histórias em quadrinhos já nos habituaram a perceber a elipse, a alteração de ponto de vista, em um mesmo ambiente, a passagem de uma cena a outra, em que, numa fração de segundo, se é levado a transposições imaginadas anteriormente apenas na literatura.

Quando nos deixamos “enganar pela realidade” fotográfica torna-se possível viajar no tempo e no espaço, e assim deixar-se perambular pelos meandros característicos metafóricos das fotografias. Trata-se de permitir que as imagens nos transportem.

As fotografias, tanto analógicas quanto digitais, mantêm essa potencialidade de nos transportar, estão no lugar de outra coisa como se fossem metáforas. Assim, as imagens que vemos e reconhecemos nos fazem estabelecer contato com nosso próprio arquivo interno.

Relações são estabelecidas, antigas e novas, e na presentificação da cópia fotográfica, no instante agora, nossas histórias são contadas. O fotógrafo propõe um relato como se fosse um cronista.

O fotógrafo e o cronista contam histórias que, baseadas em um fato real, presenciado por eles, recebem uma interpretação poética, imaginária. Além disso, tanto o fotógrafo quanto o cronista relatam em primeira pessoa, pois estiveram presentes, testemunharam a cena de que ora se valem para contar a sua história.

Por que as fotografias seguem nos encantando? Talvez porque tenhamos certeza de que não somos replicantes, como no filme Blade Runner, tendo em vista que podemos nos orgulhar de possuir uma memória fotográfica material — álbuns. Talvez porque, também, qualquer um de nós pode registrar uma fração ou mesmo uma cópia de uma obra de arte, seja produzida por um artista ou por um criador desconhecido.

Nossa foto é a garantia de que estivemos lá, ou de ao menos poder memorizar aquela imagem. Possuir uma reprodução fotográfica é como possuir o original. É um artifício de memória. Um objeto que teve contato com o passado, melhor dizendo, as luzes do passado deixaram suas marcas no sensor fotossensível.

Assim, o discurso das aparências cria narrativas que podem ser observadas em especial nas sequências e ensaios fotográficos. E segue recontando histórias, como nas crônicas dos viajantes.

(*) Joel de La Laina Sene é fotógrafo e professor do Departamento de Cinema, Arte e TV da ECA-USP

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