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O luto necessário e a covid-19

Jackeline Martini Pinheiro (*) | 01/10/2020 07:22

Nos últimos meses as notícias nos telejornais e redes sociais circularam em torno do da pandemia causada por um vírus que já vitimou mais de um milhão de pessoas ao redor do mundo.

Uma verdadeira avalanche de postagens tomou conta das redes sociais, algumas enfatizando a gravidade e a letalidade do vírus, outras minimizando ou apresentando soluções beirando ao misticismo para essa situação de saúde pública mundial. Por um lado, ou por outro, todas essas postagens buscam dar conta dessa situação inédita e a ordem do dia gira em torno do número de morte que é inerente a nossa existência, porém tema ainda muito difícil de ser tratado. Fazendo borda a tudo isso, está a necessidade humana de arrumar justificativas na tentativa de restabelecer um pseudo controle ao que nos escapa.

A morte, intensifica sentimentos de empatia, que aproxima pessoas que nem mesmo se conhecem e essa proximidade faz com que entremos em contato com um sentimento difícil de lidar, a saber, o luto. Com a chegada dessa pandemia vivenciamos lutos das mais diversas formas. Luto pela restrição dos nossos movimentos, luto por nossas relações sociais que ficaram distanciadas, luto antecipatório pela perda de entes queridos e o luto pela morte de quem amamos e que nesse caso guarda uma questão mais dramática que é a impossibilidade da despedida nos funerais e do consolo recebido nos abraços que fazem “liga” para suportar nossa dor.

Para a teoria Psicanalítica, que tenta explicar os fenômenos da mente humana, o luto é uma reação natural em resposta à perda, que não precisa ser necessariamente de uma pessoa querida, mas de algo que seja significativa para a pessoa enlutada.

Em geral expresso sob a forma persistente de tristeza, o luto é um sentimento consciente, a pessoa que sofre sabe o motivo, sabe que a dor que sente tem origem na perda sofrida. Trata-se de rompimento do elo emocional da pessoa com o seu objeto de amor, nesse caso, uma pessoa que morreu.

Por se tratar de processo natural, entende-se que o luto é necessário para a elaboração psíquica e geralmente é superado após algum tempo, salvo os casos em que o processo torna-se nocivo prejudicando a pessoa que sofre, impedindo de realizar suas atividades cotidianas. Não é raro que pessoas acometidas por um sentimento de luto não vivenciado necessitem de ajuda profissional para elaborar a situação e seguir a vida.

De acordo com a estudiosa sobre o tema, Elisabeth Kübler-Ross, o sentimento de luto pode ser classificado em cinco estágios desde a consciência do evento traumático. Porém, nem todos vivenciam essas fases de maneira cronológica e sistematizada, mas, via de regra pelo menos dois momentos desse processo são vivenciados pela maioria.

No primeiro momento, a dor da perda é tão grande que como forma de defesa, a pessoa enlutada tende a negar o acontecimento, isso ocorre como forma de preservar a integridade mental. Essa fase em geral não dura por muito tempo, logo a pessoa que sofre se depara com aquilo que popularmente chamamos de “cair a ficha”, a consciência do fato ocorrido.

Superada a fase da negação, ocorre a fase da raiva, muitas vezes expressa como revolta contra o fato ocorrido. Nessa fase a pessoa enlutada projeta no ambiente seus sentimentos hostis de frustração. Se não for elaborada, em virtude dessa agressividade voltada ao externo, é possível que ocorra problemas de relacionamento.

Depois de passada a negação e superada a fase da raiva, o enlutado se vê buscando formas de restabelecer a vida como era antes. Chamada fase da barganha, é nesse momento que aparecem as promessas e negociações como forma de controle da emoção.

Sem conseguir reverter a situação, a pessoa se depara com um sofrimento profundo, característico da fase da depressão do luto. Sentimentos como culpa e vontade de isolar-se também podem aparecer nessa fase. Pode-se dizer que é o momento em que de fato se vivencia o que ocorreu.

Vale ressaltar que todas essas fases somam um processo e desse modo, mesmo que pareça difícil, são necessárias para a elaboração saudável da perda sofrida.

Superada a fase da depressão no processo evolutivo do luto, chega a fase da aceitação do fato. É onde ocorre a paz e tranquilidade interior. No entanto, sabemos que os sentimentos por alguém muito amado persistirão, porém, depois de elaborada, aquilo que era dor profunda, é transformada em saudade, sentimento presente, que, no entanto não machuca mais.

Toda essa gama de sensações e sentimentos é experimentada no processo de luto. Isso nos humaniza, faz parte da nossa constituição enquanto seres humanos e de cultura. São sentidos inclusive em situações como rompimentos amorosos. A forma como evolui o processo vai depender de como cada um reage. Sendo por vezes necessária a ajuda profissional.

No caso específico da pandemia em que vivemos esse processo é permeado por algumas especificidades. A dor da perda e o isolamento que a pessoa enlutada pode experienciar pode confundir se com o distanciamento social imposto agravando o sentimento de solidão.   Reforçar as redes de apoio (ainda que à distância) é fundamental.  O funeral  é também parte importante no processo de luto e nos casos de covid essa fase não pode ser realizada de acordo com as nossas tradições. Os rituais fúnebres são parte importante pois trata se de um momento de despedida e também o momento em que amigos e parentes se fortalecem mutuamente. Não realizar este ritual de pode dificultar o processo de luto podendo resultar em mais estresse e angústia às pessoas enlutadas.

Por essas e outras condições as elaborações psíquicas tem se tornado um verdadeiro desafio nos últimos tempos e temos batalhado para manter mesmo que a distância o fio simbólico que nos une, mesmo que seja na dor da perda, elaborando nossos lutos diários. E como um dia disse o pernambucano Ariano Suassuna, essa identificação ocorre pois a morte é “fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre”.

Aos que ficam, restam a superação do vazio deixado pela morte e a invenção de estratégias para a continuidade da própria vida.



(*) Jackeline Martini Pinheiro é mestra em Psicologia Clínica pela Unicap (Universidade Católica De Pernambuco), professora universitária e psicanalista em Chapadão do Sul

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