Tudo agora é patologia?
Vivemos em uma era onde, cada vez mais, características humanas comuns são rotuladas como distúrbios ou condições. Sentir tristeza vira “transtorno depressivo”; ser tímido, “fobia social”; ser perfeccionista, “transtorno obsessivo-compulsivo leve”. Embora os avanços da psicologia e da psiquiatria tenham permitido diagnósticos que salvam vidas e melhoram a qualidade de vida, a tendência de patologizar a existência humana tem levantado debates sobre os limites entre o que é saudável, o que é humano e o que realmente requer tratamento.
O caminho da etiqueta
A necessidade de nomear experiências humanas é compreensível. Rotular sentimentos e comportamentos pode oferecer conforto para quem sofre e não entende o que está sentindo. No entanto, o problema surge quando toda característica humana passa a ser enquadrada em uma patologia. A tristeza, que antes era uma resposta natural às adversidades, pode ser rapidamente categorizada como um transtorno. Assim, o que é parte da vida passa a ser visto como algo que deve ser “curado” ou “controlado”.
Isso não só reduz a complexidade da experiência humana, mas também cria uma expectativa irrealista de que o bem-estar deve ser constante e absoluto. Sentir-se ansioso antes de uma apresentação ou desconfortável em um grupo grande de pessoas, por exemplo, são reações naturais do ser humano. Quando essas emoções são patologizadas, criamos uma sociedade que vê qualquer desconforto como um desvio do normal.
O peso da cultura do diagnóstico
A cultura do diagnóstico encontra terreno fértil na era da internet e das redes sociais, onde informações sobre saúde mental são disseminadas rapidamente, muitas vezes sem o devido contexto. Ao pesquisar sintomas, as pessoas se deparam com uma infinidade de termos médicos que, em muitos casos, não são aplicáveis a elas. A autoconsciência, embora importante, tem dado lugar a uma autoanálise obsessiva que transforma peculiaridades pessoais em potenciais “problemas a serem resolvidos”.
Além disso, a mercantilização da saúde mental contribui para esse cenário. Diagnósticos geram demanda por tratamentos, terapias e medicamentos. A indústria farmacêutica, em particular, se beneficia de um público que acredita precisar de intervenções constantes para lidar com questões normais da vida.
Perda de singularidade
A patologização da vida também ofusca a singularidade das pessoas. Nem todo comportamento fora do padrão precisa ser rotulado como disfuncional. Por exemplo, uma criança que gosta de observar os outros em vez de participar ativamente de brincadeiras não é necessariamente uma criança com problemas sociais. Um adulto que prefere a solidão não está automaticamente deprimido. Cada pessoa tem ritmos, necessidades e formas únicas de existir, que muitas vezes não se encaixam nos moldes propostos pela sociedade.
O que estamos perdendo?
Quando tudo vira patologia, perdemos a capacidade de enfrentar adversidades como parte natural da jornada humana. A tristeza, o medo, o fracasso e até mesmo as inseguranças são, muitas vezes, momentos de crescimento e aprendizado. A tentativa de evitar essas experiências por meio de diagnósticos e tratamentos pode nos privar de uma compreensão mais profunda de quem somos e de como lidamos com o mundo ao nosso redor.
Além disso, o excesso de diagnósticos pode desviar a atenção daqueles que realmente precisam de ajuda. Pessoas com transtornos graves podem ser negligenciadas em meio à banalização de sintomas que não representam uma condição clínica.
A necessidade de equilíbrio
Reconhecer a importância da saúde mental não significa transformar cada traço humano em uma condição médica. Precisamos de um equilíbrio que valorize tanto a ciência quanto a experiência individual. Nem todo sentimento precisa de uma solução imediata, nem todo desconforto deve ser evitado.
É essencial aprender a diferenciar o sofrimento que faz parte da vida daquele que realmente demanda intervenção. Assim, podemos honrar a complexidade de ser humano sem nos prender a etiquetas que limitam nossa visão de nós mesmos e dos outros.
No fim, a vida é cheia de altos e baixos, imperfeições e momentos de desconforto. Talvez, em vez de rotular tudo, devêssemos aprender a acolher essas nuances e aceitar que a vulnerabilidade também é parte de ser humano.
(*) Cristiane Lang é psicóloga clínica.
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