ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
ABRIL, QUINTA  18    CAMPO GRANDE 24º

Beba das Crônicas

A triste história do homem que queria ser passarinho.

André Alvez | 17/04/2021 08:30

Seu Nivaldo morreu. Essa é a grande notícia do dia. Notícia triste, é claro, como sempre foi triste a vida do seu Nivaldo, um homem solitário, dos olhos moles, encharcados d’água, a lágrima quente que não caía, (como se ele) de alguma forma conseguisse engolir a própria angústia feita saliva amarga. Acima dos olhos o assombroso par de sobrancelhas, pontiagudas e enormes, cresciam rapidamente, sem lhe dar chances de cortar. O furo no queixo era um buraco escuro, a barba sempre por fazer, o sorriso que tentava esconder, porque muito novo trocou os dentes da frente por uma perereca e a dentadura nunca parava quieta na boca. Para disfarçar, colocou dentes de ouro no lugar das presas e o que antes era feio e triste, passou a ser também um grande incômodo para quem ousava encarar diretamente o seu olhar. E quando o sol batia no seu rosto, iluminava uns riscos de expressão sofrida, o mesmo retrato dos calos nas mãos, feitos na lida com o cabo da enxada.

Pobre Nivaldo, um cão solitário e sem uivo, sempre triste.

Enxergava algo bom em mim, como se eu fosse uma espécie de socorro à sua aflição. “Li o sua foto no jornal” dizia sempre, no habitual riso disfarçado, mal sabia assinar o próprio nome. A casa de taboa, residência do Nivaldo desde muitos invernos, era a típica casa de antigamente, um poço cercado de tijolos no canto da frente, uma trinca de madeira formando a base da qual a roldana chorava enquanto puxava a água na corda carcomida. A única sombra era  a varanda do telhado semi despencado, apontando o banheiro fora da casa, no fundo do quintal. “Minha avó ouviu um bem-te-vi cantando na janela da minha mãe e então sabia que ela estava grávida: nem deu sete meses e eu nasci. Parece um passarinho, disse a minha mãe, e a avó falou sem muito pensar, parece mesmo, uma coruja. Eu já nasci com as sobrancelhas assim”.

Eu ia visita-lo porque batia uma dor dentro de mim ao pensar naquele senhor tão triste e solitário. Só eu ia visita-lo. “O tempo passa ligeiro demais, a gente nem pensa e já aconteceu, a gente mal bebe e a água já vira urina, escorre no ralo e o mormaço vai levando a água fedida e amarela para dentro do chão, eu nem sei onde tudo vai dar.” Sem querer, criava filosofia: “A vida é rápida como a urina entrando no chão”.

Para ajudar nas despesas, além do serviço com a enxada, Nivaldo criava abelhas no fundo do quintal e às vezes vendia algum dos curiós que criava nas diversas gaiolas presas nas estroncas dos fundos da casa. “Olha como canta esse bicho!” Exclamava e logo abaixava a cabeça, sussurrando uma dolorida confissão na voz embargada: “eu queria ser curió”.

Certa vez foi preso: as abelhas se enfezaram na primeira vez que conseguiu encher de mel uma garrafa, e ao tentar vende-la, o marido da dona Efigênia achou muito caro os dez reais que ele pediu. “Minha boca ficou enorme de tanta picada de abelha e o sujeito achou muito caro pagar dez reais”, bateu com a garrafa na cabeça do marido da dona Efigênia e só não o matou porque sabia sentiu o fervor cobrir o seu rosto e (sabia) quando enfezado ficava mais feio que o normal.

“O sujeito não merecia o gasto da ponta da minha faca”. Um dia sumiu e somente eu percebi. Três dias depois reapareceu, no bar da esquina lotado, numa assombrosa quietude, pediu um copo de pinga e me olhou como quem confessa um segredo. Eu sabia, no eixo daquele olhar de brilhos inesperados, giravam os carinhos de mulher. Sim, tempos depois me confessou, guardou um bom dinheiro e foi até outra cidade à procura de uma casa mal falada, ficou lá o dia todo, bebendo e sorrindo, sem que ninguém sentisse ojeriza de suas sobrancelhas, se incomodasse com o brilho de seus dentes de ouro e nem mesmo com a perereca a lhe escapar pela boca a todo instante. Pagou as bebidas e não se deitou com nenhuma mulher, já lhe bastou o prazer de não ser tratado como uma doença que se pega só de olhar, mesmo pagando, sentiu pela primeira vez o calor de alguns carinhos nos cabelos surrados e até mesmo uma alisada fraca nas malditas sobrancelhas.

Para o Nivaldo, a felicidade tinha preço. “Vou juntar mais dinheiro e volto lá daqui uns tempos” sorriu e cuspiu no chão uma saliva grossa, pisada pelos pés descalços dos dedos tortos e das unhas grossas e pontudas.

Morreu dormindo, como um passarinho, disse o vizinho.

No enterro, somente eu estava lá, olhando para o seu rosto fechado, parecendo sonhar nascer novamente, outro passarinho, não a coruja, nem o bem-te-vi, talvez, com sorte, um curió do canto tão belo que a todos pudesse encantar. Então não precisaria colocar as mãos na boca o tempo todo tentando esconder os dentes, nem mesmo baixar o rosto para esconder as assombradas sobrancelhas, seria como sempre quis e nunca conseguiu, apenas um passarinho, cantando feliz no galho de uma árvore do tronco tão imenso, do tamanho da felicidade que nunca nessa vida pôde abraçar.

Nos siga no Google Notícias