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Comportamento

A garota de patins: a dor anônima que não tece um novo destino

Andrea Brunetto | 01/06/2014 07:43
A garota de patins: a dor anônima que não tece um novo destino

Na primeira vez que a viu andando de patins no Parque dos Poderes, o desejo se agitou nele feito bandeira tresloucada ao vento.

E depois a viu muitas vezes. Todas sem que ela o percebesse. Preso a esse anonimato, tinha a liberdade de olhá-la como quisesse. E de seguir sua vida de homem sério, calado, que guardava um mundo em seus pensamentos. Esse desejo escondido do mundo, pela garota de patins, o tirou da infelicidade "comezinha" de todas as manhãs, da constatação de ser um homem preso a seu destino

Um dia a viu no supermercado e tomou um susto: deslocada das árvores e pássaros do parque, com roupa diferente, fazendo propaganda de algum produto, foi tudo inesperado. Mas o desejo foi o mesmo. Ela deslizou seu corpo de patins ao lado dele. Chegou a sentir o perfume dela. Não olhou para ele. E a vida seguiu igual.

Um dia ela sumiu, dia após dia e nada dela. Os anos correram rápidos. E a lembrança dela ficava evidente quando via outra mulher pela qual sentia desejo e cujo corpo lembrava a circunferência do dela.

Sete anos depois a reencontrou caminhando na avenida Afonso Pena. Reconheceu-a de costas. Pelo balanço de seus quadris um novo mundo se abriu para ele. Um que trouxe uma década passada. Remoçou, sorriu. Ela devia ter mais de trinta anos; séria, não olhava para ele nem para outros homens. Devia estar casada. Seguia anônimo como sempre, mas ir vê-la caminhar toda manhã o fazia menos só.

Ela sumiu novamente, desaparecendo de todas as manhãs em que passava para vê-la antes do trabalho. Na manhã do desaparecimento, voltou mais tarde, pois pensou que ela tivesse mudado o horário. Nada. Voltou pela terceira vez para constatar que a perdeu para sempre.

Mas são tantas idas e vindas nessa vida que seguia igual, que topou com ela anos depois no supermercado onde foi tomar seu cafezinho. E tudo voltou ao que era. Um dia, ele saindo, ela entrando com as contas a pagar na mão, sorriu para ele. Olhou-o bem nos olhos e deu um sorriso que o tirou completamente do anonimato. Foi até ela, se apresentou, disse que a achava linda. Percebeu que ela ficou nervosa, esfregou o dedo nos lábios como a pedir um beijo. Quando dias depois a beijou pela primeira vez ganhou um ano de vida. Iriam fazer um outro mundo a partir de agora?

Essa história inacabada - que continuarei em crônica futura - veio-me à cabeça ontem em função de uma indicação: Andréa escreva sobre a infidelidade dos homens! E, como um lapso, li infelicidade. E estou aqui escrevendo sobre elas. Essa muda, anônima infelicidade, que muitas vezes não trás uma lágrima, uma palavra. Solitária, inerme, não faz laço com ninguém. Diferente do tão comum choro feminino que sempre acarreta uma reação, mesmo que seja de raiva (embora muitas vezes provoque com-paixão); dor muda que não muda o mundo, não tece um novo destino. E pode fazer do desatinado destino, uma vida que segue sempre igual.

*Andrea Brunetto é psicanalista, escritora e colaboradora querida do Lado B

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