ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
ABRIL, QUARTA  24    CAMPO GRANDE 24º

Comportamento

Elas passaram por sofrimento imenso e agora bordam para lutar contra depressão

Projeto do curso de Enfermagem da UFMS ajuda mulheres por meio das linhas e agulha

Eduardo Fregatto | 18/07/2017 06:15
Ninfa e as alunas Vivian e Marjana bordam juntas no projeto. Vínculos são formados por meio das conversas durante o bordado. (Fotos: Marcos Ermínio)
Ninfa e as alunas Vivian e Marjana bordam juntas no projeto. Vínculos são formados por meio das conversas durante o bordado. (Fotos: Marcos Ermínio)

"Assim como acontece na vida, no bordado você pode errar, desfazer o ponto, voltar atrás e começar de novo". Quem diria que a arte de usar linhas e agulha para criar formas e desenhos no tecido poderia também ser uma metáfora sobre nossas experiências, boas e ruins, no cotidiano da vida.

A frase acima, entre aspas, é da professora Priscilla Marchetti, do curso de Enfermagem da UFMS. Ela é a responsável, junto com três alunas, do projeto intitulado "Bordando a Vida", que transforma o simples passatempo em maneira de compreender a vida e seus percalços. As oficinas atendem mulheres que recebem alta do tratamento no Centro de Atenção Psicossocial, mas que ainda precisam de assistência e acompanhamento. 

Nós fomos conhecer essa iniciativa de perto e encontramos mulheres em processo de cura de traumas e sofrimento. Agora, com a ajuda da professora, das alunas e do bordado, elas estão repensando suas histórias, se abrindo umas às outras e criando uma nova esperança para enfrentar seus problemas.

"Está me ajudando muito. É a conversa, o abraço, o silêncio, o beijo de cada uma. É aquele afeto, aquele carinho gostoso", afirma a cozinheira Marcilene da Costa Martins, de 36 anos.

Mulheres chegam acanhadas, mas aos poucos se soltam e começam a compartilhar seus sentimentos.  (Fotos: Marcos Ermínio)
Mulheres chegam acanhadas, mas aos poucos se soltam e começam a compartilhar seus sentimentos. (Fotos: Marcos Ermínio)

Marcilene é a primeira mulher com quem conversamos. Tímida, ela não gosta de tirar fotos, mas aceita nosso pedido. "Eu odeio fotos, minha filha amava. Estaria agora fazendo biquinho para a câmera", diz, com os olhos cheios de saudade e um rápido sorriso amoroso.

Com a fala baixa, quase como se não quisesse ser ouvida, vai nos contando sua história. Perdeu a filha, Sophia, de 4 anos, num acidente, há cerca de dois meses. Entrou em processo de depressão. Foram os familiares que perceberam que ela precisava de ajuda. "Eu ficava parada, olhando pra baixo. Estava ali com minha família em volta, mas só de corpo", relata. 

"Ontem não teve o encontro e eu passei a manhã inteira deitada. Mais tarde, eu respirei fundo, fiz como se as meninas estivessem comigo, e no final da tarde consegui bordar. Aquele aperto no peito, o desespero que dá... eu me sinto melhor", diz Marcilene. Sua dor é visível, assim como o amor que sente pelos filhos e sua vontade de encontrar forças para continuar vivendo. "Tenho um filho, de 13 pra 14 anos. Penso nele. Precisa de mim", diz.

Outra integrante do projeto, a dona de casa Ninfa Toledo, de 57 anos, tenta conversar, mas não consegue. Responde apenas algumas perguntas, de maneira monossilábica. "Gosto [de bordar]", murmura, do jeito de quem quer encerrar logo a conversa que nem começou.

Marcilene borda ao lado da professora e enfermeira Priscilla. (Fotos: Marcos Ermínio)
Marcilene borda ao lado da professora e enfermeira Priscilla. (Fotos: Marcos Ermínio)

"Ela só conversa durante o bordado", pontua Priscilla. A professora e as alunas explicam que o vínculo entre as mulheres é criado aos poucos, a cada depoimento, a cada conversa e gesto. Só com o tempo elas vão se abrindo, percebendo como a história de uma pode ajudar a outra.

"Muitas chegam acanhadas, mas a partir do depoimento das outras, o vínculo se fortalece e elas conseguem desenvolver uma amizade. Conseguem encontrar umas nas outras forças pra continuar e enfrentar os problemas", destaca uma das estudantes, Gabriela Piazza, de 23 anos.

É na hora do bordado que as mulheres se soltam e conversam, tomam coragem para compartilhar seus sentimentos. "Elas chegam desconstruídas. E aqui começam a construir algo. Isso ajuda na construção de algo lá fora", diz a professora. "A gente sempre está fazendo esse paralelo com a vida. Se erram o ponto, tem que desmanchar. Não é uma sensação agradável, mas é preciso voltar e começar de novo, como na vida. Elas escolhem as cores, as linhas. É mesmo um processo de construção".

"Você não fica parada, fica mexendo as mãos, aprendendo e conversando", diz Marcilene, mostrando que apenas o ato de ocupar as mãos já faz toda a diferença pra quem só tinha vontade de permanecer deitada.

Ao final de cada dia de bordado e conversa, há uma roda de abraços. E são abraços fortes, apertados. Elas também beijam as mulheres no rosto e dizem: "que bom que você veio". A frase deve ser dita por todas, umas para às outras.

As alunas que ajudaram a idealizar a oficina: Gabriela, Marjana e Vivian. (Fotos: Marcos Ermínio)
As alunas que ajudaram a idealizar a oficina: Gabriela, Marjana e Vivian. (Fotos: Marcos Ermínio)

Aprendizado - A experiência é tão forte que até mesmo as alunas aprendem diariamente. "Eu aprendi a bordar com elas, ainda tenho muita dificuldade. Com o bordado, a gente consegue desenvolver resiliência", opina Gabriela.

"É uma maneira de eu me tornar uma enfermeira que consegue sentir empatia", avalia Marjana da Silva, 21. Já para Vivian Silva Ribeiro, 26, o processo todo é uma prova de que está no caminho certo. "Ver que é algo tão importante para elas faz a gente sentir que nosso trabalho tem valor", afirma.

Em poucos minutos dentro da sala, foi mesmo possível sentir a importância do que acontece ali dentro. É como a própria Marcilene nos ensina: a gente nunca pode supor que sabe o que cada um está passando, sua história, sofrimento e luta. "Por fora você vê a pessoa toda, mas por dentro não. Quando você vê um andarilho na rua, não sabe tudo o que aconteceu pra ele estar ali. Tem gente que chama de drogado, de viciado... mas a gente nunca sabe o que cada um está passando", afirma, segurando a emoção de quem está passando por tudo e só pede um pouquinho de empatia do próximo.

E, de fato, o mundo seria um lugar muito melhor se todo mundo tivesse a sensibilidade da Marcilene.

Mais informações - O projeto Bordando a Vida acontece por meio da Liga Acadêmica de Saúde Mental e Enfermagem da universidade. É voltado para mulheres acima de 45 anos em sofrimento psíquico. Para participar, é preciso passar por uma triagem. Mais orientações podem ser obtidas pelo telefone 3345-7962.

Curta o Lado B no Facebook.

Nos siga no Google Notícias