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Comportamento

Na recepção da Casa Da Mulher, Sula é trans que sofre tanto quanto quem apanha

Paula Maciulevicius | 02/03/2016 06:12
Sula Brunê é uma mulher trans com 43 anos e que tem o maior orgulho de estar onde está. (Foto: Fernando Antunes)
Sula Brunê é uma mulher trans com 43 anos e que tem o maior orgulho de estar onde está. (Foto: Fernando Antunes)

Os cabelos ruivos e o batom nos lábios abrem um sorriso tímido, mas cheio de carinho. É esse vermelho que se tornou, há oito meses, a porta de entrada para as vítimas de violência na Casa da Mulher Brasileira. Por trás do balcão, quem chega não sabe, mas Sula, a recepcionista e telefonista, é uma personagem que sofre tanto quanto elas, se levar em conta que preconceito é sim uma das formas mais claras de violentar alguém.

"É uma violência, porque atinge a alma do ser humano. Não vou falar que hoje eu sofro o preconceito, mas sim o velado".

Sula Brunê é uma mulher trans com 43 anos. A essência feminina ganhou o exterior a partir dos 14, quando ela pensava primeiro ser gay, até se descobrir trans. "Eu fazia de tudo para não ser quem eu sou. Só que hoje eu não quero ser outra pessoa que não seja eu. Eu amo quem eu sou". E esse amor é externado para quem abre as portas da Casa da Mulher Brasileira, complexo que recebe as vítimas de violência na região do Jardim Imá, em Campo Grande. 

Nas fotos, ela não é identificada não pela questão de gênero, e sim como uma ressalva da própria Casa da Mulher Brasileira, como medida de segurança, por trabalhar com vítimas de violência, elas podem sofrer represálias dos autores presos.

A entrada de Sula no mercado de trabalho formal, pela primeira vez em 30 anos, foi através da ATMS (Associação das Travestis e Transexuais de Mato Grosso do Sul). Quando viu a oportunidade da vaga, Sula estava em viagem pelo interior do Estado e até então pouco conhecia sobre o funcionamento da Casa.

Com o foco em cumprir as políticas públicas, foram destinadas duas vagas à transexuais, indígenas e deficientes. "Eu mandei currículo, fiz a entrevista e a terceirizada me chamou. Eu sempre fico com o pé atrás por causa do preconceito. Sempre imaginando que em alguma seleção eu não estaria e quando eu vi, já estava dentro da Casa, conta Sula.

A trans não só foi para dentro da Casa, como se instalou na linha de frente de atendimento. O que além de reconhecimento é motivo de orgulho para Sula. "É muito bom, teve um dia que atendi uma senhorinha e ela me agradeceu, me chamou de amorzinho e isso para mim é muito importante", afirma. A função é ser telefonista e recepcionista. É ela quem dá, ao lado de uma equipe de mulheres, as primeiras orientações quando alguém liga e também preenche a ficha, com os dados pessoais das vítimas.

"Às vezes, tem dias, que baqueia a gente um pouco. Nosso atendimento é humanizado, isso faz parte da rotina, mas tem dia que não tem como chocar, dói", conta. Isso Sula consegue sentir apenas pela expressão de quem está diante dela, porque todas as informações do ocorrido são passadas para o atendimento psico-social.

Cabelos e batom vermelho, assim que ela recebe mulheres na Casa. (Foto: Fernando Antunes)
Cabelos e batom vermelho, assim que ela recebe mulheres na Casa. (Foto: Fernando Antunes)

Ao fazer o atendimento, Sula diz que se sente incluída na sociedade, porque recebe do lado de lá do balcão, o respeito que toda pessoa merece, independente da orientação sexual. No trajeto de casa até a Casa, são três ônibus e como ela almoça lá mesmo, a maletinha de comida se tornou motivo de questionamentos, o que expõe, o estigma de que transexual e travesti só pode trabalhar com beleza.

"Ah, você trabalha em salão? Me perguntam" Quando não é esta a dúvida, alguns chegam a imaginar que o outro trabalho seria programa nas ruas, sem enxergar além, que existem outras opções. "Foi o que ficou, que nós só fazemos isso na sociedade: somos cabeleireira ou nos prostituímos".

Sula por exemplo está no terceiro semestre de Serviço Social, começou a faculdade sem imaginar que "cairia", um dia, na central de atendimento às vítimas de violência. "Eu chego na Casa feliz, quando eu vejo a Casa do ônibus, que eu pego três para chegar aqui, para mim isso tudo é uma experiência única. Eu sou a primeira mulher trans a trabalhar na primeira Casa da Mulher Brasileira, isso para mim é um marco na minha vida", comemora.

Pela idade, Sula estaria na quinta faculdade se tivesse ingressado no ensino superior logo que saiu da escola. Mas não o fez porque viu, ao longo de décadas, mais portas se fechando do que abrindo. "Vou fazer faculdade para que se a sociedade me discrimina? Mas hoje eu vejo com outros olhos. Eu sou o que sou e não existe esse negócio de discriminar".

Hoje as unhas têm cor, diferente de quando Sula chegou à Casa, toda tímida até no esmalte. (Foto: Fernando Antunes)
Hoje as unhas têm cor, diferente de quando Sula chegou à Casa, toda tímida até no esmalte. (Foto: Fernando Antunes)

Quem conhece sabe, Sula é uma mulher trans porque ela faz questão de carregar essa bandeira por onde passa. Não é de erguer para multidão nos movimentos, mas faz o trabalho 'formiguinha', desde a correção quando ouve alguém falando 'traveco' até a própria apresentação.

No banco da universidade, ela se apresentou sem medo. "Eu sou Sula Brunê, eu trabalho na Casa da Mulher Brasileira, onde recepciono e atendo telefone. Eu sou uma pessoa trans. Desde o primeiro dia me afirmei e eu me afirmo sempre, em qualquer lugar, porque eu tenho os mesmos direitos que você", ressalta.

Lá mesmo, ao pedir para usar o nome social, a universidade prontamente atendeu, mas disse que nunca havia tido nenhuma aluna como ela. A resposta foi ouvida com orgulho de quem agradeceu por ter chegado ali e que espera ter sido a primeira, de muitas.

O que mudou na vida sentar atrás do balcão? Fortaleceu Sula como pessoa. "Não tenho mais medo de enfrentar a sociedade. Antes eu tinha, falava vou bater em tantas portas, nove vão fechar para mim sem nem me conhecer. Agora eu tenho menos medo.

A violência está para ela da mesma forma que está para quem chega ali depois de uma agressão verbal, física ou psicológica. "Eu entendo porque eu já fui violentada no meu gênero. O mesmo gênero feminino meu é o mesmo das mulheres. Eu sou uma trans feminista e luto pelo direito das mulheres.

A mulher está começando a ter seus direitos agora, não tem que ter lei do 'João da Penha', porque o homem sempre teve seu direito. A mulher tem agora".

O que Sula quer mostrar para a sociedade é que consegue e é capaz de se formar, tirar carteira, ter um carro, um emprego formal. "E não é só eu. Nós somos capazes, nós trans fomos igual as mulheres, fomos ficando para trás. Existe a transfobia? Existe. E falar de preconceito no trabalho, não tem contra o gay. Mas contra as trans, tem. Vê se tem uma trans na frente de atendimento numa loja? Isso é preconceito".

A fala dela é de quem luta por espaço onde estiver. Na Casa, de início, Sula entrou tímida. Até a cor do esmalte era clarinha, mas ao ver que as amigas abusavam do colorido, ela também se sentiu à vontade para pintar até de azul.

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