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Comportamento

Travesti há 4 anos, Sabryneh escolheu Campo Grande para voltar a ser Edney

Elverson Cardozo | 10/03/2015 06:24
Edney foi Sabryneh por quatro anos. (Foto: Arquivo Pessoal)
Edney foi Sabryneh por quatro anos. (Foto: Arquivo Pessoal)

Assim que completou a maioridade, o cabeleireiro Edney Ciriaco, 26, deu tchau à mãe, uma empresária do ramo de alimentos, e saiu de Itabaiana, pequena cidade do interior do Estado do Sergipe, para morar sozinho em Maceió, Capital do Alagoas. O retorno, três anos depois, foi como Sabryneh.

Ele se apropriou da identidade feminina depois de travar grandes batalhas internas e após muitos questionamentos sobre ter nascido no “corpo errado”. Edney sempre soube que era “diferente”. Se assumiu gay aos 14, mas demorou para perceber - e aceitar - que tinha “alma de mulher”, até que decidiu viver como uma.

A transformação exigiu, claro, uma mudança completa no guarda-roupas e no próprio corpo. O rapaz, que nasceu em Penedo, no Alagoas deixou o cabelo crescer e também tomou hormônios. Só não fez cirurgias. Não foi fácil dar vida à Sabryneh, mas, mais que isso, foi difícil mantê-la viva.

Sabryneh “morreu” há cerca de quatro meses, em Campo Grande. O aviso aos amigos de Itabaiana foi dado pelo Facebook, no dia 3 de outubro de 2014, em um post com tom de desabafo:

“Hoje começa uma nova etapa da minha vida. Um recomeço. Há quatro anos eu sentia algo diferente. Era como se eu estivesse no corpo errado. Veio a mudança. Resolvi assumir uma personalidade que existia e ainda existe dentro mim. Mas, infelizmente, no mundo em que vivemos, existe preconceito, discriminação, olhares diferentes, piadinha e falsas amizades. Fingem que te aceitam e te consideram normal, mas, ao dar as costas, tudo muda. Recebi uma oportunidade de emprego fora daqui, em Mato Grosso do Sul, e resolvi tentar dar um rume diferente na minha vida, mas como Edney”.

No dia do embarque para Campo Grande. (Foto: Arquivo Pessoal)
No dia do embarque para Campo Grande. (Foto: Arquivo Pessoal)

A decisão surpreendeu e gerou um burburinho, por isso, no dia seguinte, outro recado foi dado para deixar tudo bem claro: “Gente, eu continuo sendo gay. Não existe ex-gay. Apenas não vou mais me vestir de mulher e levar o nome Sabryneh”.

A viagem à Capital ainda foi como “menina”, mas com roupas mais discretas e o cabelo escondido debaixo de um boné de aba reta. O cabeleireiro queria fazer toda a transformação longe de casa para, depois, retornar como “menino”.

Ele escolheu Campo Grande porque já havia recebido uma proposta de emprego de uma empresária sul-mato-grossense, que o conheceu durante uma viagem para o interior de Alagoas. Assim, deu para unir as duas coisas.

“Ela falou que estava precisando de uma pessoa como eu e tal. Aí eu fui. Só que ela me fez algumas exigências. Disse que quando eu fosse para trabalhar precisaria usar roupas masculinas. Como já queria tirar o travestismo, foi uma boa. Juntei o útil ao agradável. [..] Em uma cidade fora, seria mais fácil cortar o meu cabelo, botar minhas vestes masculinas para levar uma vida normal, sem muito 'frequetê' e fluxo de pessoas”, diz.

Outra realidade - A recepção, afirma, foi tranquila, mas veio junto com o que ele chama de “prova de fogo”. “No começo foi um pouco estranho quando cortei o cabelo, mas me acostumei logo. É muito mais fácil. [] Mas, no primeiro dia, minha patroa falou: 'vamos para a igreja!' E eu já tinha trauma porque, quando ia, todo mundo me criticava. [] Mas eu disse: vamos sim. E foi muito bom saber que ninguém estava me olhando, fazendo chacota e com aquele olhar diferente de discriminação. Foi maravilhoso”, afirma.

Foi maravilhoso porque, como homem, ninguém falou em pecado e nem o condenou. Como Sabryneh, as coisas eram bem diferentes. “Tinha muitas 'chacotinhas'. [] Sempre tinha. Sempre existiu”. E não existia só na igreja, mas em restaurantes, espaços públicos e no médico, por exemplo. “As pessoas me chamavam por Edney. Acontecia assim, deixa eu narrar para você entender: 'Atenção, senhor Edney, comparecer à recepção'. Eu chegava lá, toda montada e bonita, e aí falavam: 'Então, a senhora está acompanhando ele?' Eu dizia: 'Não. Ele sou eu'. Essas pequenas situações me fizeram pensar em fazer a mudança”, conta.

Com 1,80 metro, Sabryneh chamava atenção. (Foto: Arquivo Pessoal)
Com 1,80 metro, Sabryneh chamava atenção. (Foto: Arquivo Pessoal)

Nessa lista de “pequenas coisas”, que foram se acumulando, ele inclui os “amigos da onça”. “Me decepcionei com algumas pessoas. Eu sentia que elas ficavam constrangidas ao sair comigo. Me sentia excluída porque, na realidade, eu sabia que elas queriam me levar, mas, por conta da minha condição, era difícil chegar em algum lugar e não ser reparada. E eu chamava atenção porque tenho um metro e oitenta e era muito feminina. Era bem constrangedor”.

Como travesti, Edney também viu muitas palavras bonitas, de apoio, cair por terra. Ele lembra de uma amiga que sempre o incentivava a arrumar um namorado, até o dia em que o viu com um homem.

“Eu acabei arranjando um namoradinho e a gente saia normal, como casal. Ela viu, eu perguntei o que tinha achado e ela respondeu: 'Ai, sinceramente, eu senti nojo de vocês dois porque você é uma mulher e tudo, mas, no fundo, no fundo, é homem'. Isso me constrangeu muito. Quer dizer... Você me apoia e, de repente, vem com um balde de gelo em cima de mim? Eu já queria fazer a mudança, cortar o meu cabelo e isso me influenciou mais ainda porque a sociedade visava meu feminino, mas não queria saber das minhas relações”, reclama.

Fora isso, prossegue, tinha o custo e o trabalho para se manter sempre impecável. “É muito investimento. Eu deixei de ser travesti porque é mais fácil e você não precisa de tantos cuidados”.

Deixou, também, porque nesse universo, relata, existe muita inveja e as oportunidades são raras. “Uma travesti vai pedir emprego em uma loja e não é bem recebida. Às vezes é mal tratada. Não estou generalizando, mas, assim, são fatos que acontecem. Eu nunca tive problema nessa questão porque sempre tive minha profissão”, descreve. Isso significa, em outras palavras, que Sabryneh nunca precisou fazer programas.

Como repórter, Sabryneh já cobriu baladas em um programa que lembra o Pânico. (Foto: Arquivo Pessoal)
Como repórter, Sabryneh já cobriu baladas em um programa que lembra o Pânico. (Foto: Arquivo Pessoal)

Mas ela já trabalhou como repórter, cobrindo baladas em um programa de TV que lembrava o Pânico. “Ela era uma pessoa divertida, que contagiava todo mundo e chamava muito a atenção por onde passava. Todo mundo comentava. Era o maior 'frequetê'. Eu, hoje, sou mais tranquilo, mais calmo, gosto de me divertir com meus amigos. Não gosto de chamar atenção como antes. Eu passo e ninguém repara”.

Aos fundamentalistas de plantão, que comemoram a transformação sob o argumento de que “Deus fez a obra”, ele manda outro recado: “Não, não voltei a me vestir com roupas [masculinas] porque quero constituir família. Posso até querer ter um companheiro, mas isso é uma coisa futura. Não é algo que cai do céu. É com o tempo, mas eu penso, sim, nisso”.

O cabeleireiro, que já voltou para o Sergipe, diz que não se arrepende de nada e guarda com carinho os bons momentos que o “lado feminino” lhe proporcionou, mas não pretende voltar a se montar. Não restam dúvidas. Foi o preconceito que fez Edney “matar” Sabryneh.

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