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Escrita inclusiva e feminismo

Por Érika de Moraes (*) | 05/12/2017 07:11

Uma recente polêmica na França mostra que nossas sociedades são mais semelhantes do que poderia parecer. Trata-se de uma proibitiva do primeiro-ministro Edouard Philippe para a oficialização da chamada escrita inclusiva, contemplando marcas como o uso de toutes et tous (todas e todos) e a “feminização” da concordância no plural. Justifica-se pelo “respeito ao formalismo próprio aos atos de natureza jurídica e administrativa” e a conformidade com as “regras gramaticais e sintáticas, notadamente por razões de inteligibilidade”.

No Brasil, marcas de inclusão de gênero têm sido cada vez mais frequentes no uso “politicamente correto” da língua. A Linguística tem explicações para defender que a língua, em si, não é machista. Por exemplo, o contraste não estaria entre o feminino e o masculino, mas entre o marcado e o não marcado. Assim, em Língua Portuguesa, haveria palavras “não marcadas” e palavras com marcação do feminino (em geral, terminadas em “-a”), simplificando o tema para fins didáticos. Porém, como a língua reflete o político (poderia mesmo dizer: língua é política), é válido perguntar: por que a forma supostamente neutra coincide com a masculina? O latim tinha distinções mais específicas: o masculino, o feminino e o neutro (em geral, para inanimados), o que pode ajudar um pouco a compreender movimentos históricos das línguas. Se, há poucas décadas, noções de latim eram ensinadas no ensino fundamental, hoje em dia, infelizmente, a disciplina chegou a “cair” em cursos de Letras, num contexto em que se privilegiam formações tecnicistas, utilitaristas, produtivistas. Com menos reflexão, menos elementos para questionar o sistema vigente.

Retomando o exemplo do francês, algumas palavras trariam, oficialmente, somente a forma “neutra”, que, mais uma vez, coincide com a grafia regularmente masculina, a exemplo de auteur e docteur (uma única palavra para autor/autora e doutor/doutora). Mas o uso trouxe mudanças e as formas “feminizadas” já são incorporadas pela academia, embora alguns autointitulados guardiões da língua tentem resistir. Com muita alegria, em documentação oficial para meu estágio de pós-doutoramento na França, fui tratada como professeure docteure. Dicionários já registram doctoresse para a médica. Ou seja, os sufixos característicos do feminino – no francês, -e, -ère, -ice e outras variações – ganham força na língua viva. É digno de nota que se trata de palavras cujos sentidos se vinculam a certo prestígio, por isso, por tanto tempo associados ao mundo masculino.

Embora mudar a língua seja pouco perto do que precisamos para mudar o mundo, esses movimentos em prol da feminização da língua – sinônimo de identidade (“Minha Pátria é minha língua”) – mostram resistência à preponderância do padrão masculino. Mas é necessário ir além: ações e políticas de inclusão devem vir acompanhadas de mudanças estruturais. Conceber a língua como um lugar neutro é contraparte da crença de que mulheres (cheias de mi-mi-mis, diriam) não precisam de políticas públicas específicas, enquanto, cada vez mais, perdem direitos duramente conquistados, como o das grávidas, antes protegidas por lei, não trabalharem em funções que implicam riscos ao feto (reforma trabalhista) e a aproximação (cogitada a equivalência) do tempo para aposentadoria de homens e mulheres (reforma da previdência), embora os salários ainda sejam desiguais, como demonstram pesquisas.

Entre os exemplos que revelam incompreensões de gênero, a escritora americana Susan Pinker relata (no livro O Paradoxo Sexual) que mulheres acadêmicas são cobradas por seus colegas de departamento (e isso nos Estados Unidos) por sua produção científica durante a licença maternidade, afinal, interpretam as mentes masculinas, ficaram meses “em casa”. É preciso mudar mentalidades, inclusive para não recairmos, nós mulheres, em modelos masculinos quando, por ventura, viermos a ocupar funções de gestoras, o que requer cuidado com o velho círculo vicioso do oprimido que oprime. A suposta neutralidade, na língua e na política, pode significar tão pura e simplesmente o apagamento do feminino. No mundo ideal, falaríamos apenas de direitos humanos (sem especificar o feminismo) e valorizaríamos características como a sensibilidade independentemente do sexo.

(*) Érika de Moraes é professora da FAAC-Unesp. Doutora em Linguística, com ênfase em Análise do Discurso, com pós-doutorado pela Université Paris-Sorbonne, na França. Autora da tese “A representação discursiva da identidade feminina em quadros humorísticos” (Unicamp).
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