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Não é preciso reinventar a roda para salvar o Cerrado

Por Rafael Loyola (*) | 11/05/2017 15:01

O Cerrado brasileiro é único sob diversos pontos de vista.

Ele é único quando avalia o fornecimento de água. Chamado de “berço das águas”, 43% de toda água do país fora da bacia amazônica está no Cerrado. Ele contribui para a vazão de 8 das 12 regiões hidrográficas do Brasil, alimentando rios da Amazônia, do Nordeste e do Sudeste.

Ele é único quando se avalia a agricultura e a pecuária. A disponibilidade de água, aliada a solos férteis e planos geram um ambiente perfeito para agricultura mecanizada e produção de commodities como soja e cana-de-açúcar.

Extensas pastagens foram desenvolvidas ali e o Brasil é campeão em produção e exportação de alimentos e carne. Outro apelido do Cerrado é “o celeiro nacional”.

Ele é único quando se avalia a biodiversidade. O Cerrado é o lar de mais de 13.000 espécies de plantas, sendo quase metade exclusivas do bioma. Dentre essas espécies, mais de 600 estão ameaçadas de extinção, o que corresponde a 30% de toda flora ameaçada do Brasil.

Para animais, os dados também são contundentes: praticamente metade das aves do Brasil (mais 850 espécies) ocorrem no Cerrado, assim como metade dos répteis do Brasil e mais de 200 espécies de mamíferos, como o lobo-guará, o tatu-canastra e a onça-pintada.

Ele é único quando se avalia os impactos ambientais que sofre. Metade da área originalmente coberta pelo Cerrado já foi transformada em algo diferente. O desmatamento no Cerrado é 2,5 vezes maior que na Amazônia. Aliás, desmatamento nem é o termo correto. O melhor seria perda de vegetação nativa, pois o bioma é formado por um complexo de vegetações nativas que vão além das florestas, com campos abertos, campos com arbustos e árvores e até campos coberto de pedras e cactos.

A perda de vegetação é de aproximadamente 1% ao ano, uma área do tamanho aproximado de todo estado de Sergipe. Algumas regiões do Cerrado, como a região chamada de MATOPIBA – por ser o Cerrado encontrado nos estados do Maranhã, Tocantins, Piauí e Bahia – têm taxas ainda maiores. Só até 2010, 60% do Cerrado existente nessa região já havia sido perdido e transformado em campos de soja. Além disso, não mais que 8% do bioma é protegido por reservas.

Ele é único quando se pensa em soluções ambientais. Uma vez que perder o Cerrado significa perder nossa segurança hídrica e alimentar, as soluções para a conservação do bioma interessam a todos os brasileiros e passam pela manutenção e adoção de políticas públicas com foco na região. Em um artigo recente publicado na revista científica Nature Ecology and Evolution (1), um grupo de autores do qual faço parte discutiu tudo isso, à luz da importância nacional do Cerrado e das políticas existentes para garantir sua persistência. Felizmente, algumas dessas políticas já estão em andamento, embora precisem de um grande impulso para que sejam mais eficazes ou sejam mais rapidamente implementadas, como discutimos no artigo.

Por exemplo, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado (PPCerrado) tem ajudado a desenvolver atividades produtivas sustentáveis e a executar o monitoramento e controle das unidades de conservação. É preciso acelerar o processo de implementação da 3a fase (2016-2020) e orientar novas ações de forma interministerial.

Outra política pública muito importante e descontinuada em 2011 é o monitoramento do desmatamento do Cerrado. É necessário acelerar a implementação do Programa de Monitoramento Ambiental dos Biomas Brasileiros, que prevê o monitoramento anual ou bianual de taxas de desmatamento, ocorrência de queimadas e focos de calor e recuperação da vegetação nativa.

Outras políticas, no entanto, precisariam ser adotadas ao longo de toda extensão do bioma. A Moratória da Soja é um bom exemplo. A moratória é um acordo entre indústria, governo e sociedade civil que impede a comercialização de soja produzida a partir de desmatamento ilegal na Amazônia brasileira. Desde que o acordo foi assinado, o desmatamento da Amazônia caiu 86%. A boa notícia é que esse ano a moratória foi prorrogada por tempo indeterminado. A má notícia é que ela só se aplica à Amazônia.

Hoje em dia, cerca de 90% e 70% do que resta do Cerrado é adequado para cultivo de soja e cana-de-açúcar, respectivamente. Ambos os cultivos têm previsões de expansão para as próximas décadas. Se estendida para o Cerrado, a moratória da soja poderia eliminar o desmatamento ilegal sem comprometer essa expansão de culturas.

Pesquisas recentes já mostraram que a área ocupada por pastagens de baixa produtividade (cerca de 72 milhões de hectares) é duas vezes maior que toda área necessária para expansão de soja e cana no Cerrado (cerca de 13 milhões de hectares). Aumentar a produtividade dessas pastagens liberaria uma área enorme para a agricultura e isso já vem sendo discutido nas universidades, ONGs, empresas e no governo.

Como um último exemplo de política já existente, cito a Lei de proteção da vegetação nativa de 2012, conhecida como novo código florestal brasileiro. No Cerrado a lei pode ser um complicador uma vez que com a nova legislação, a necessidade de proteção da vegetação ao longo dos rios e topos de morro (nominadas áreas de preservação permanente – APPs) foi alterada, em muitos casos para menos que o previsto pelo código anterior. Como resultado, 40% do que restou do Cerrado poderia ser legalmente convertido nos próximos anos. Sob amparo legal, seríamos capazes de desmatar o bioma até que apenas cerca de 10-15% de sua cobertura original fosse mantida.

Entretanto, essa mesma lei prevê a restauração de áreas que foram desmatadas para além do permitido e mecanismos de incentivos para a conservação no caso de proprietários que protegeram mais que o exigido. A real implementação da lei poderia garantir um cenário verde para o Cerrado.

Nesse cenário, também apresentado no artigo científico que mencionei, mostramos que ao aumentar o potencial sustentável das pastagens do Cerrado de 35% (valor atual) para 61% até 2050, seria possível liberar toda terra necessária para expansão de cultivos, além de aumentar a produção de carne em 49% e ainda separar cerca de 6,4 milhões de hectares de terra para restauração – o que é exatamente déficit atual de áreas de Cerrado nativo que deveriam existir, mas foram convertidas em agricultura no passado, segundo o novo código florestal. Nesse cenário não há nenhuma necessidade de conversão de novas áreas. Essa combinação de desmatamento zero, restauração e planejamento de áreas para produção agrícola poderia evitar à extinção de 1.140 espécies que só ocorrem ali; um número oito vezes maior que o número oficial de plantas extintas em todo o mundo desde o ano de 1500.

O Cerrado brasileiro é único sobre diversos pontos de vista. Para salvá-lo não precisamos reinventar a roda. Todas as políticas públicas necessárias para fazê-lo já existem e carecem de integração, planejamento, impulso ou extensão ao Cerrado (algumas delas só existem para a Amazônia). O que precisamos é de vontade política e engajamento social. O Cerrado é um patrimônio brasileiro e cabe a nós mantê-lo vivo para as nossas e as futuras gerações.

(1) Strassburg et al. 2017. Moment of truth for the Cerrado hotspot. Nature Ecology and Evolution 1, 99.

(*) Rafael Loyola é doutor em Ecologia, diretor do Laboratório de Biogeografia da Conservação da Universidade Federal de Goiás e membro da Academia Brasileira de Ciências e da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza

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