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Pós-Pandora

Por Valdemir Pires (*) | 10/02/2018 14:08

Houve um tempo, recente, em que ser de direita e ser burro era vexaminoso. Nesse tempo, ser de direita e ser burro eram comportamentos quase idênticos. Então, fosse alguém burro, ficava na sua; fosse de direita, mantinha-se mordendo a língua. Se alguém defendesse a ditadura, não era rotulado de direita, mas, com toda segurança e eficácia, de imbecil.

Naquele tempo, o mundo caminhava para a fração de centro-esquerda do espectro ideológico: entendia-se que o socialismo privava o indivíduo de liberdade e o capitalismo reduzia, para a imensa maioria, a possibilidade de trabalhar para viver, e não o contrário. Conquistara terreno, então, a ideia de que o meio termo cairia bem a todos: o governo buscaria o bem-estar social com suas políticas bancadas com tributação progressiva, sem atrapalhar a iniciativa privada e mantendo praticamente intactas as liberdades. Os defensores dos extremos seguiam debatendo entre si, com ideias bem interessantes – ideias, sobretudo, inclusive de uma direita que se pode chamar de civilizada (liberal, tendente ao centro). O grande dilema estava em saber até que ponto pode ir o egoísmo, e quais os obstáculos ao altruísmo, por um lado, e ao oportunismo, por outro.

Naquele tempo, tornar pública a opinião era custoso: era necessário falar e/ou escrever bem, com algum conteúdo, com respaldo em ideias acumuladas pela Humanidade, pois tornar pública uma postura, além de custoso, passava por diversos crivos. Ao contrário do que acontece hoje, quando os canais de expressão são livres de barreiras e acessíveis a um custo baixíssimo.

A impressão que se tem é que a internet terminou sendo a chave que abriu caixa de Pandora moderna (ou pós-moderna? ou pós-verdade?): dela emergiu uma quantidade infinita de línguas e penas, inundando o mundo com sua imundície pegajosa, odienta, prepotente porque seus donos, pela primeira vez, conforme tão bem disse Humberto Eco e repetiu Henrique Vila-Matas, se organizaram, constituindo o maior bando de bárbaros de que se tem notícia, movendo-se com uma velocidade que nunca se viu.

Enquanto a idiotice, a cretinice, a estupidez e assemelhados atributos se disseminam com uma facilidade incrível, a superexploração e a especulação financeira de grande monta (de que os aplicadores financeiros de classe média, orgulhosamente, acham que participam botando a juros miúdos suas parcas economias), também potencializada pelos canais globais e velozes oferecidos pela internet, faz seus estragos, concentrando a riqueza e a renda e transformando em verdadeiros escravos urbano-industriais vastos contingentes da humanidade.

A História tem dessas: prega peças. Quando, na trajetória da humanidade, houve tamanhas possibilidades de aprendizado, barato, para tanta gente, ao mesmo tempo, junto com tantos ignorantes que não se dignam a fazer uso de uma fração do conhecimento acumulado, contentando-se em formar opinião a partir de fragmentos mal-ajambrados, ministrados a conta-gotas por meios de comunicação de massas oportunistas? Quando, desde que o mundo é mundo, a produtividade foi tão elevada (a ponto de ser possível vida digna a tanta gente) e a fome grassou tão escandalosamente?

(*) Valdemir Pires é economista, professor e pesquisador da Unesp.

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