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Cidades

No ano em que a homofobia virou crime, preconceito ainda feriu e matou em MS

Em 2021, a intolerância causou mortes e sofrimento, mas também indignação e mudanças na legislação

Silvia Frias | 28/12/2021 07:18
Dia de felicidade entre mãe e filho na vacinação contra covid, em Campo Grande: lembrança e orgulho por Gustavo. (Foto: Arquivo)
Dia de felicidade entre mãe e filho na vacinação contra covid, em Campo Grande: lembrança e orgulho por Gustavo. (Foto: Arquivo)

O olhar enviesado, a palavra mordaz, a ação punitiva sem explicação, a agressão física, a morte: o preconceito se traveste de várias formas para atingir aquele que não teria porque de se defender por ser quem é. Em 2021, a homofobia e a transfobia deixaram rastro de tristeza e dor, mas também de indignação e, como consequência, de mudanças na legislação, que tornaram o preconceito, oficialmente, crime.

“Isso nos ajuda bastante, porque não prescreve, é importante para dar o tempo pedagógico para informar as pessoas, a população precisa enxergar que isso é crime”, explicou o subsecretário de Políticas Públicas LGBT de Mato Grosso do Sul, Leonardo Bastos.

Por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), casos de homofobia e transfobia foram enquadrados como tipo penal na Lei do Racismo (7716/1989), até que o Congresso Nacional edite lei específica sobre a matéria. O crime prevê pena de até 5 anos de prisão.

A necessidade de respaldo da lei se justifica pelos casos registrados. De acordo com Bastos, somente em Mato Grosso do Sul, de 2019 a julho de 2021, foram 49 boletins de ocorrência identificados pela subsecretaria com motivação homofóbica. “Foi agressão verbal, como ‘viadinho tem que morrer’, socos e chutes pelo fato de ser LGBT”, listou Bastos.

Gustavo em postagem na rede social, em dia de trabalho. (Foto: Reprodução)
Gustavo em postagem na rede social, em dia de trabalho. (Foto: Reprodução)

O dentista Gustavo dos Santos Lima foi alvo de um desses ataques, caso que ganhou repercussão em agosto de 2021. Voluntário na vacinação contra covid-19 no pavilhão Albano Franco, em Campo Grande, relatou o preconceito nas redes sociais. “(...) senhora desceu do Corolla branco, pegou os documentos do chão e apontou seus dedos para mim dizendo: ‘Eu não quero que minha filha seja vacinada por esse tipo de gente, um viado’”.

As palavras tiveram o poder de destruir o que Gustavo estava reconstruindo, aos poucos, no processo de recuperação de depressão. No dia 14 de outubro, aos 27 anos, foi encontrado morto pelo irmão, em casa. A investigação policial ainda segue sem identificação da ofensora na fila da vacinação.

A violência e a intolerância também atingiram de forma letal outro sul-mato-grossense: Marcos Vinício Bozzana da Fonseca, 25 anos, foi assassinado por asfixia, no dia 4 de maio, em Curitiba (PR), onde cursava o último ano de Medicina.

O autor, José Tiago Correia Soroka, confessou o crime, mas negou que tivesse motivação

Marco quando passou no vestibular, há 5 anos. (Foto: Arquivo Pessoal)
Marco quando passou no vestibular, há 5 anos. (Foto: Arquivo Pessoal)

homofóbica, alegando que a vítima em potencial seria qualquer um que o deixasse entrar na casa. O MPPR (Ministério Público do Paraná), porém ofereceu denúncia por latrocínio, qualificado pela homofobia. Soroka já responde por outro homicídio e uma tentativa, os dois crimes também contra gays.

Obstáculos – No caminho de quem sofre a violência, também existe a vergonha de denunciar o mal sofrido. Em julho, a transexual Camila Ferreira, 54 anos, passou semanas em agonia até ter coragem de denunciar à Polícia Civil o sequestro e o estupro sofridos, em crime ocorrido no dia 17 de junho: foi espancada, imobilizada e obrigada a praticar sexo com cachorro, segundo relatado.

“Guardei para mim, porque me senti envergonhada e com medo de que debochassem de mim. Muita gente acha que pessoas como eu não prestam ou fazem coisas erradas. No fim, levei tudo isso em conta”. Este é outro caso que ainda segue sem solução.

Alice Costa conquistou na Justiça direito de usar uniforme feminino. (Foto: Arquivo Pessoal)
Alice Costa conquistou na Justiça direito de usar uniforme feminino. (Foto: Arquivo Pessoal)

Em Ladário, a sargento transexual Alice Costa, integrante da Marinha desde 2011, foi à Justiça para garantir o direito de usar nome, uniforme e corte de cabelos femininos.

A Marinha, por meio da AGU (Advocacia-Geral da União), recorreu ao TRF 3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região) para derrubar a decisão. O recurso, conforme anotação do desembargador federal Valdeci dos Santos, trouxe conteúdo “perigosamente discriminatório” ao comparar o caso a “admitir o piloto de avião cego e o segurança armado tetraplégico”. A decisão que libera trajes e corte de cabelo feminino foi mantida. E a defesa da militar denunciou cinco oficiais por crime de transfobia.

Também na esfera militar, mas em Campo Grande, o capitão da PM (Polícia Militar), Felipe dos Santos Joseph, denunciou estar sendo perseguido e vítima de homofobia dentro da corporação. O motivo foi áudio pejorativo sobre homossexuais compartilhado no grupo da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul.

Gay dentro de uma corporação conservadora, sentiu-se ofendido, declarou sua opinião contrária, saiu do grupo e levou o caso ao MPM (Ministério Público Militar). No dia seguinte, 8 de julho, Felipe foi chamado para prestar declarações, supostamente, sobre outros motivos, considerou se tratar de coação, negou as respostas e acabou preso por desrespeitar um superior. Foi solto no dia seguinte e exigiu retratação.

Capitão Felipe dos Santos Joseph denunicou comportamento homofóbico. (Foto: Arquivo Pessoal)
Capitão Felipe dos Santos Joseph denunicou comportamento homofóbico. (Foto: Arquivo Pessoal)

Caminho – Leonardo Bastos enxerga com otimismo os desdobramentos jurídicos e a repercussão de casos emblemáticos, ocorridos em 2021. “Existe ainda muito ódio destilado, mas também aumentou número de pessoas que entendem que aquele comportamento deve ser repudiado”, disse.

Em julho, recomendação do Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, Alexandre Magno Benites de Lacerda, orienta às Promotorias de Justiça que não apliquem medidas brandas para casos de racismo/injúria racial.

A recomendação enfatiza que tal crime é “inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão” pela Constituição Federal.

Bastos diz que houve evolução cultural que combate o discurso de ódio. “E isso é importante para nós, sozinho a gente não muda nada”.

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