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Cidades

Sem testemunha ou vestígios, em crimes de estupro palavra é prova

Luana Rodrigues | 03/07/2017 13:41
Imagem de campanha sobre abuso infantil. (Foto: Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio)
Imagem de campanha sobre abuso infantil. (Foto: Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio)

Alice, 12 anos, queria – quer muito – denunciar o homem que abusou dela por quase cinco anos, dos três aos sete anos. Mas, sua família acha que é melhor não tocar no assunto, para “não trazer mais sofrimento”. O estuprador segue impune. Maria, 17 anos, conseguiu denunciar um estupro, porém não foi prestar depoimento ao juiz, porque na delegacia perguntaram se ela tinha certeza do que havia acontecido. Rita, 5 anos, não entende o que é abuso, mas contou para a mãe que o padrasto havia “brincado” com a “menininha” dela. Um policial tratou tudo como “brincadeira” e o homem ainda mora com a criança.

Os nomes são fictícios, mas trazem à tona histórias reais de um crime sem testemunha, que muitas vezes, por causa disto, fica impune. Os exemplos também revelam a importância do depoimento da vítima, quando se trata de um crime de violência sexual.

Sem testemunhas e em muitas situações, sem vestígios físicos, o crime de estupro tem contra si algo que ganha cada vez mais força em decisões judiciais: a palavra da vítima. Em atenção a isso, uma lei aprovada no dia 4 de abril deste ano, dita como deve ser a coleta de depoimento de crianças vítimas de abuso, é o chamado ‘depoimento sem dano’.

Em Mato Grosso do Sul, a modalidade é chamada de “escuta protegida” e vem evitando mais sofrimento para centenas de crianças em pelo menos três cidades do Estado – Dourados, Nova Alvorada do Sul e Campo Grande. Dentro do projeto, de 2014 até agora, a Coordenadoria de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul atendeu 432 crianças, sendo 331 meninas e 101 meninos, de seis a 17 anos.

Sala de escuta protegida no Fórum. (Foto: Divulgação)
Sala de escuta protegida no Fórum. (Foto: Divulgação)
Sala de audiências, de onde juízes, promotores e advogados acompanham escuta protegida. (Foto: Divulgação)
Sala de audiências, de onde juízes, promotores e advogados acompanham escuta protegida. (Foto: Divulgação)

De acordo com Fernanda Costacurta, os depoimentos duram cerca de 30 minutos, mas há uma preparação anterior que pode perdurar por horas. Logo que chega, a criança é atendida por uma técnica facilitadora, função desempenhada por Fernanda. A profissional, treinada para lidar com esta situação, leva o pequeno até uma antessala, onde há brinquedos, papel para desenho, ursinhos de pelúcia, um lugar especial.

Ali a criança não precisa tocar no assunto do abuso, apenas brincar e aprender a confiar em que irá lhe ouvir nos próximos minutos. Após este estágio, a vítima é levada para sala de depoimento. Neste local existe apenas duas poltronas, e câmeras, dispostas em locais estratégicos, longe dos olhos da criança.

“É a partir daí que começa o depoimento especial, transmitido por videoconferência a uma sala ao lado, onde, geralmente, estão o juiz responsável pelo caso, um promotor, a defesa e o acusado”, diz a técnica.

Tudo começa com a pergunta: “O que você veio fazer aqui hoje?”. E o papo segue de acordo com o que o pequeno quer contar. “O mais importante, segundo a metodologia, é que a técnica não interfira no depoimento. É precise eu criança conte só aquilo que realmente aconteceu e não que seja induzida a dizer algo”, explica.

A profissional que faz a entrevista também fica responsável por transmitir à criança as perguntas de quem está na outra sala. Por meio de um fone de ouvido, o juiz, a acusação e a própria defesa, dizem o que querem saber a técnica e ela transmite a criança, de maneira que não a constranja.

“É uma situação muito delicada. É preciso fazer com que a criança conte o que passou, mas sem fazer com que ela sofra ainda mais com isso. Tomamos todos os cuidados”, revela.

Tortura – Mas esta relação cuidadosa da Justiça com a vítima, nem sempre foi assim. Antes da aprovação da lei, a criança ficava na mesma sala que o juiz, promotor, advogado e agressor.

“Era muito triste, uma tortura. Uma vez acompanhei a audiência de um menino autista. Ele gritava e chorava muito, porque não queria falar no assunto na frente de todas aquelas pessoas”, diz Fernanda.

A forma considerada tortuosa de coleta de depoimento, que ainda é realidade na maioria das cidades do interior do estado, colocava frente a frente criança e estuprador, um segundo trauma, conforme a psicóloga, Rosa Rosangela do Carmo Pires Aquino, supervisora da equipes de depoimento especial em MS.

“Era uma revitimização da criança. Imagine ter que relembrar tudo o que passou estando de frente para quem provocou tudo. É como se houvesse uma nova agressão”, diz a psicóloga.

É preciso mais - Apesar da grande conquista em relação às salas de escuta protegida - em 2007 era apenas uma e hoje já são mais de 100 em quase todos os estados brasileiros- muitas cidades, principalemnte no interior, ainda não colhem os depoimentos nesta modalidade. O juiz Marcelo Ivo ressalta que o grande desafio é fazer a capacitação dos profissionais.

“A existência de uma equipe multidisciplinar formada em entrevista forense com crianças é fundamental para que o testemunho da criança ou adolescente seja realizado de forma acolhedora e amigável” diz Ivo.

Não há um prazo, mas conforme o juiz, a expectativa do TJMS é implantar a Escuta protegida em todas as comarcas do Estado.

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