Em “Causa Mortis”, responsabiliza-se a vítima
Ao ler notícias de mortes violentas envolvendo grupos minoritários — pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), negros, mulheres e indígenas —, frequentemente caímos na tentação de observar também os comentários abaixo das matérias. Ali, a fúria social, especialmente em um país majoritariamente cristão, revela-se sem filtro. A sociedade brasileira defende uma moral idealizada, mas muitos que a proclamam não a seguem de fato. E, apesar de esses grupos serem vítimas constantes de violência, eles próprios por vezes reproduzem os discursos morais e de ódio que os atingem. A dor da vítima só é legitimada quando ela se encaixa no estereótipo da “vítima perfeita”. Se uma mulher ou pessoa LGBT desvia dessa moral (sendo promíscua, usando drogas, andando sozinha à noite, vivendo uma “vida dupla”), ela rapidamente passa a ser vista como corresponsável pela própria tragédia.
Nos últimos anos, em Campo Grande, casos como o da mulher que morreu após um aborto clandestino, do universitário assassinado, do ex-superintendente de Cultura e, mais recentemente, do padre morto em Dourados, esses três últimos homossexuais, ilustram esse fenômeno. A reação pública majoritária não é de compaixão, mas de culpabilização. Em uma cultura cristã e heteronormativa, qualquer comportamento que fuja do padrão é tratado como algo abominável. Assim, a morte dessas pessoas não deveria, segundo essa lógica moralista, ser lamentada, pois elas “não seguiram um dever de santidade”.
O medo e a necessidade de aceitação fazem com que membros desses próprios grupos adotem a retórica do opressor. É comum ver gays considerados “limpinhos” criticando a comunidade por ser extravagante, “afeminada demais” ou por se expor “sem necessidade”. Internaliza-se a discrição como a única forma legítima de existir. Dessa forma, a “bicha espalhafatosa”, ou a que se relaciona com michês, até mesmo a enrustida que busca aventuras salientes passa a ser vista como alguém que “pediu” a violência.
Do ponto de vista psicanalítico, a internalização desse discurso moralista funciona como mecanismo de defesa: ao se distanciar da vítima, o sujeito tenta reforçar a sensação de segurança. Surge a fantasia de invulnerabilidade: “Como eu não faço isso, não acontecerá comigo”. “Eu não levo desconhecidos para casa”, “não ando sozinha à noite para ser estuprada”, “não transo com qualquer um para depois querer abortar”. Assim, acredita-se estar protegido.
Esse ciclo é interminável. Enquanto a sociedade não confrontar sua hipocrisia moral, continuaremos culpando a mulher vítima de feminicídio — “por que ela não largou dele?”, “deveria ter escolhido melhor antes de colocar alguém assim dentro de casa”. A fase final da violência é a morte, mas a culpabilização póstuma é o último e mais cruel ato de opressão social. A pergunta não deveria ser “o que ele ou ela estava fazendo lá?”, mas sim: “Por que a sociedade permitiu que o algoz se sentisse no direito de cometer tal ato?”.
(*) Evandro Santos Pinheiro é cientista social.
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