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Religião e ciência: algumas perspectivas históricas

Por Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva (*) | 09/03/2017 10:44

É comum conceber o pensamento religioso e a prática científica como distintas esferas da atuação humana: a primeira resguardaria a alma e os costumes, a segunda concentraria seus esforços na compreensão dos fenômenos da natureza. A separação entre ciência e religião, em uma concepção ampla, é tida, muitas vezes, como inata e essencial, ou seja, como se fossem campos incomunicáveis. Mas a pesquisa histórica, ou mais precisamente o recorte metodológico feito pela história das ciências, tem defendido que a ligação entre essas duas instituições é mais basilar do que se poderia imaginar.

Na realidade, é quase consenso na historiografia contemporânea que o nascimento da ciência moderna está relacionado, em alguma medida, a fenômenos religiosos. Distante da ingênua visão de alguns iluministas, como Condorcet, que viam no catolicismo medieval um entrave ao desenvolvimento da metodologia científica, cada vez mais pesquisas históricas têm demonstrado a importância dos cristãos e dos islâmicos na consolidação da Revolução Científica na Europa Ocidental do século XVI e XVII. Neste breve artigo trouxemos quatro referenciais da produção historiográfica que nos ajudam a entender este relacionamento.

Pierre Duhem, físico e historiador das ciências, produziu uma monumental obra em dez volumes intitulada Le système du monde, histoire des doctrines cosmologiques de Platon a Copernic na qual analisa as estruturas cosmológicas defendidas pelos principais pensadores ocidentais desde os gregos antigos até Copérnico. Uma das conclusões mais intrigantes de Duhem é a defesa da escolástica medieval como momento ímpar na intelectualidade ocidental.

Segundo este autor, muitos pensadores medievais atrelados à Igreja Católica, até mesmo alguns que exerciam cargos eclesiásticos, tais como Roger Bacon, Guilherme de Ockham, Roberto Grosseteste, Thomas Bradwardine, Jean Buridan e muitos outros, foram fundamentais para a formação de um método científico moderno de investigação. Buridan, por exemplo, um padre francês do século XIV, foi responsável pelo desenvolvimento da teoria de Ímpeto, base nos estudos de Galileu sobre a inércia.

Outro historiador que analisa esta questão é o estadunidense Edward Grant. Em seus estudos a respeito da ciência moderna, detecta uma dupla função da Igreja Católica na consolidação do pensamento científico na Baixa Idade Média. A primeira foi o impulso e a relativa autonomia que a instituição religiosa concedeu às primeiras universidades medievais. A segunda foi o incentivo à formação dos clérigos em filosofia natural, além, claro, do curso de teologia. Esses teólogos-filósofos naturais se formavam “Mestres em Artes” e foram fundamentais na produção intelectual medieval. Seriam eles, inclusive, os responsáveis pela criação de uma cultura de debate acadêmico que visava à construção do conhecimento através do embate entre teorias, esquema muito parecido com os que encontramos até hoje nas universidades. Assim, forma-se um cenário intelectual adequado para que, na Idade Moderna, a ciência pudesse prosperar na magnitude como vimos.

Robert King Merton, notável sociólogo da ciência estadunidense, não acredita que os católicos tenham cultivado um cenário favorável à emergência da ciência moderna. O autor volta suas reflexões para o impacto da Reforma Protestante na mentalidade da Europa Ocidental. Em seus estudos, o mais famoso intitulado Science, Technology and Society in Seventeenth Century England, Merton afirma que o pensamento científico moderno é o produto da alteração na forma de se conceber o conhecimento e o relacionamento do homem com a natureza.

Alguns grupos calvinistas mais rigorosos e moralistas juntaram-se a grupos luteranos que valorizavam o individualismo: o resultado foi a formação das ideias empiristas e utilitaristas que caracterizariam a ciência do século XVII. Essa nova "ética", uma nova mentalidade, receberia o nome de “Ethos puritano” e legitimava a premissa de que o estudo do mundo natural era também o estudo da obra do Criador. A metodologia científica deveria se desenvolver, então, com o intuito de realizar uma aproximação do homem com Deus.

Não nos esqueçamos do fundamental papel do islamismo na promoção das ciências e da filosofia. O historiador paquistanês Syed Nomanul Haq defende a hipótese de que a ciência islâmica, que teve seu auge entre 800 e 1300 depois do nascimento de Cristo, foi fundamental tanto para a preservação das obras clássicas da filosofia grega, através de traduções para o árabe, quanto na produção de profícuos comentários tecidos pelos pensadores islâmicos.

Podemos destacar a tradução feita por Qusta Ibn Luqa da Aritmética de Diofanto, que recebeu o nome árabe A Arte da Álgebra, resgatando as operações da matemática grega. Ou mesmo Nácer Aldim al-Tuci, xiita persa, que defendeu modelos astronômicos não ptolomaicos e, através de escritos aristotélicos, conseguiu resolver algumas falhas nas teorias da cosmologia de Ptolomeu. Ou Ibn al-Haytham que, em seus trabalhos com a óptica e a geometria, uniu a disciplina matemática à física, produzindo uma premissa metodológica fundamental para a ciência. Por fim, não podemos esquecer dos famosos cientistas árabes ligados à medicina, como Avicena, que produziu a monumental enciclopédia médica Cânone, ou Ibn al-Nafis, que descobriu a circulação pulmonar do sangue, além do místico sufi Al-Ghazali e seu incentivo aos estudos em lógica e anatomia. Todo esse progresso científico foi promovido por uma filosofia e uma religião islâmica que não apenas permitiam seu desenvolvimento, mas também impulsionavam e investiam na investigação da filosofia natural.

Embora haja várias vertentes com interpretações variáveis, a historiografia das ciências contemporâneas tem, cada vez mais, defendido que o fenômeno da “ciência” deve ser entendido como processo, ou seja, como uma forma de representação do mundo que se manifestou, de formas distintas, em quase todas as sociedades humanas. Este processo deve ser analisado em paralelo com outros, principalmente com o do pensamento religioso.

Embora tenham existido, e ainda existam, atritos entre cientistas e religiosos, o importante é compreender esses dois campos de práticas humanas, não como antítese uma da outra, mas de uma forma dialógica e complementar. Como podemos observar, um nasce atrelado ao outro. Enfim, o progresso das relações humanas depende do potencial de diálogo entre essas diversas instituições e cabe aos cientistas e religiosos não aderir a posturas sectárias e fundamentalistas.

(*) Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva é mestrando da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Assis.

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