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Comportamento

Sobrinha largou tudo para viver 38 dias dentro da UTI da covid-19

Helen viveu o início do medo de uma doença que ninguém conhecia e poucos tinham coragem de chegar perto.

Thailla Torres | 27/05/2020 07:10
Helen é sobrinha do coração de Laís, que no dia 3 de maio, perdeu o marido, o dentista Magno para a covid-19.
Helen é sobrinha do coração de Laís, que no dia 3 de maio, perdeu o marido, o dentista Magno para a covid-19.

A médica veterinária e acadêmica de Medicina Helen Cristina de Jesus Porral Calvino, de 39 anos, almoçava com a família no dia 24 de março em sua casa, em Ponta Porã, quando recebeu um áudio da tia de seu marido, Laís Nazareth Naveira, contando que o dentista Patrocínio Magno Portocarrero Naveira havia sido internado no hospital com um quadro grave de covid-19.

Dias antes, no home office, Helen se debruçava sobre os livros técnicos de Medicina se preparando para a semana de provas que exigiam dela tempo e concentração. Mas a voz quase silenciosa e abalada da “tia Laís” naquele dia fez tudo ficar pequeno.

Havia dias que Helen e a família cumpriam isolamento social e acompanhavam cada notícia sobre o coronavírus, que tem uma característica muito ruim: o paciente pode estar relativamente estável de manhã e, à tarde, precisa ser intubado e ir para a UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Era exatamente o que tinha acontecido com o marido de Laís.

Ainda na mesa do almoço, Helen e o marido conversaram por alguns minutos. Ela se despediu da mãe, da filha de 6 anos e dele com abraço apertado e disse: “Não se preocupe, estou indo para cuidar dos seus tios, e vai ficar tudo bem”. Horas depois chegou a Campo Grande de carro, sozinha, com algumas peças de roupa na mochila, mas sem data marcada para voltar.

“Eu achava que ficaria uns 15 dias até tio Magno ser liberado, se recuperar, e eu conseguir ajudá-los por aqui. Cheguei, fui ao hospital, soube no mesmo dia que ele já estava intubado, mas vim para casa da tia Laís e disse a ela que tudo ficaria bem de novo. Dali em diante foram 38 dias”, conta.

Helen decidiu ficar com a tia durante a pandemia. Ao mesmo tempo, viveu uma situação completamente difícil: o início do medo de uma doença que quase ninguém conhecia. Nem paciente, nem médica, a estranha dentro da UTI aprendeu muito mais sobre a Medicina e a humanidade, capaz de mudar o cenário de solidão nos hospitais.

Ela largou tudo para ficar com os tios em Campo Grande durante a pandemia. 
Ela largou tudo para ficar com os tios em Campo Grande durante a pandemia.

Durante 38 dias, Helen foi a porta-voz de Magno e da família. Visitava o hospital todos os dias, ao meio-dia. Depois de quase 45 minutos de conversa com o médico, transmitia tudo à Laís, em seguida, escrevia um texto ou gravava um áudio, numa linguagem menos técnica, para falar sobre o real estado de saúde do tio querido.

Influenciada pela faculdade, o trabalho do médico intensivista que todos os dias lhe atendia com paciência, e consternada pela dor de pessoas que ingressavam na UTI e as companhias desoladas, Helen também virou uma tradutora dentro do hospital.

Em uma linguagem médica, que lhe é familiar devido ao relacionamento com as duas faculdades, ela recebeu informações sobre a saturação de oxigênio, a taxa de creatinina, o quadro pulmonar, a reação dos rins à medicação, a situação dos demais órgãos, a administração do antibiótico azitromicina, o descarte da hidroxicloroquina, além de uma auto recomendação recorrente: viver um dia de cada vez.

Em vários momentos, deixou o coração de sobrinha calado, e falou como a Helen estudante, que não sabe como é ser indiferente às dores e esperanças das famílias. Ajudou com palavras, às vezes, só com o silêncio, pela sensibilidade em compreender emoções sem interferir nelas.

“Mesmo quando havia intercorrências, eu ficava até uma ou duas horas da tarde esperando para falar com o médico intensivista e a psicóloga. Na frente deles estava uma sobrinha, mas, também, uma acadêmica de Medicina curiosa. Em momento algum ele (médico) me barrou nas perguntas. Tudo o que eu falava ele ouvia. Me respeitava como família, mas me dava uma posição também como estudante. Eu chorava e tinha o apoio dele, eu perguntava e tinha todas as respostas”.

Helen está no quarto ano de Medicina. (Foto: Maringá Eventos)
Helen está no quarto ano de Medicina. (Foto: Maringá Eventos)

A experiência como familiar dentro da UTI foi além de ser convencida da importância de máscaras, luvas e respiradores. Helen passou a ouvir desabafos sobre a despedida, a saudade, o medo, o isolamento, e assim se tornou uma espécie de canal de comunicação com algumas famílias. Como a de um guarda municipal que precisava cumprir plantões e se desdobrava para chegar a tempo do horário de visita. A esposa de um médico que levou uma imagem de Nossa Perpétuo Socorro, que não pôde ser deixada ao lado da cama de UTI do marido.  Também de uma menina que viu o irmão asmático ser internado com covid-19, e que não compreendia tudo o que o médico falava.

“Algumas dessas famílias eu tive a chance de conversar. Eu me aproximava, perguntava, ouvia e trocava ideias. Dessa forma, fui conhecendo histórias e passei a viver cada uma delas. Vi despedidas, infelizmente, mas comemorei muitas altas, como a do médico que não recebeu a imagem da santa, mas saiu do hospital com a esposa, que na porta, disse que não esquecia de mim. Foi emocionante”, lembra.

Numa relação entre profissionais, pacientes e familiares, afetados por palavras como ‘grave’, ‘instável’ e, por vezes, ‘morte’, Helen criou uma conexão com o hospital quase inimaginável até ouvir aquele áudio de Laís na hora do almoço. “Se alguém me falasse que eu iria viver tudo isso dias antes de eu vir para Campo Grande talvez eu não acreditaria”.

Mas, houveram dias angustiantes. “Houve um momento em que coloquei fones de ouvido. Foi triste, doloroso também. Minha vontade era abraçar todas aquelas famílias, salvar o tio Magno, salvar todos os pacientes numa UTI de 10 leitos que chegou a receber 8 diagnosticados de uma só vez”.

Metamorfose - Magno não voltou para casa no horário previsto pela esperança de Helen. Um dos primeiros levados pela covid-19 em Campo Grande, morreu no dia 3 de maio, uma semana antes de completar 75 anos, depois de 38 dias na UTI.

Dois dias antes do falecimento, a piora no quadro clínico deu a ela a chance de se despedir dele na UTI. Ainda que a tristeza tomasse conta, não dispensou palavras de conforto e encorajamento. “Eu pude dizer a ele sobre a nossa admiração, o amor da família e o legado. Pedi a ele que se tivesse forças, que ficasse, mas, que se fosse a hora, que cuidaríamos da tia Laís como ele sempre cuidou. Conversei sobre muitas coisas”, descreve.

Numa conjunção de números, Helen acredita ter vivido 38 anos, para ser transformada em 38 dias, período em que fez aniversário de 39 indo até o hospital em busca de notícias. “Aprendi em 38 dias de UTI que o que a gente leva dessa vida é o amor que semeamos durante a caminhada, nada mais. Tio Magno partiu deixando um legado, será lembrado pra sempre com amor. E isso, pra mim, é o mais importante”.

Entre tantas angústias que permeiam uma unidade de pacientes críticos em seu estado de saúde, para Helen, sobressai a vontade de continuar na Medicina. “Muita gente me perguntou se eu não tive medo dessa proximidade, medo de ser contaminada, e eu digo que não. Se eu pudesse me dividir, daria um pouco de mim para todo mundo naquela UTI. Essa experiência me mudou completamente. Me fez aprender muita coisa, sobre como ser uma filha, mãe, amiga e pessoa melhor. Me fez enxergar a médica que eu quero ser e a médica que eu nunca vou ser”.

Experência de vida virou tatuagem em homenagem aos tios.
Experência de vida virou tatuagem em homenagem aos tios.

Já se preparando para voltar para casa no próximo fim de semana, Helen mostra na perna o resultado da “metamorfose vivida”, como ela mesmo define, tatuada na pele. “Eu sempre gostei muito de borboleta, um bichinho estranho que se transforma, então resolvi tatuar ela ao lado de uma rosa, como símbolo do amor admirável entre o tio Magno e a tia Laís”.

Sobre a especialidade na Medicina, questiono se a atuação como intensivista ganhou outro peso já que um de seus desejos é ser geriatra. O olhos cheios de lágrimas respondem junto com as palavras. “Ainda não escolhi, mas tenho certeza que hoje estou preparada para me tornar uma médica e fazer a diferença na vida das pessoas”, finaliza.

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