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Como lidar com o vazio?

Por Lia Rodrigues Alcaraz (*) | 18/06/2025 09:07

Você já sentiu um “buraco” interno? Já sentiu a impressão de que nada é capaz de preencher um espaço? Como uma falta, ou algo que você esqueceu em algum lugar e nem consegue lembrar sobre o que se trata? Apenas o sentimento insiste em ficar.  Falar sobre o vazio acaba sendo uma experiência relatada por muitas pessoas, sobretudo em contextos de abundância de estímulos, relações fugazes e imperativos de satisfação imediata. A aparente contradição entre “ter tudo” e, ainda assim, sentir‑se incompleto convida a uma reflexão conceitual e prática. Para a psicanálise lacaniana, o vazio não é um acidente a ser extirpado, mas um elemento estrutural de qualquer ser. Para tanto, o argumento que Lacan institui sobre o vazio é que: (1) o vazio articula‑se à lógica do desejo; (2) combatê‑lo tentando preenchê‑lo literalmente aprofunda o mal‑estar; e (3) lidar com o vazio requer reconhecer‑lhe a função simbólica, assumir a incompletude e criar modos singulares de significá‑lo.

Como a  falta pode então fundar o desejo? O buraco sentido no cotidiano retoma essa falta estrutural. Ele se manifesta como angústia quando a pessoa (escrito como sujeito na psicanálise) tenta colar‑se a algo, que denominamos objeto, sendo ele  imaginado, desejado ou sonhado, e que parece pode ser capaz de “tampá‑lo totalmente”, e dessa forma o alívio em simplesmente nao ter ele ali, causando um transtorno no meio das nossas coisas, o buraco está tampado, e dessa forma, finjo que ele não existe, pois não o estou vendo, porém, contudo, a lógica lacaniana sustenta: não há objeto que preencha o vazio, porque a própria condição de subjetividade se baseia em não‑tudo (pas‑tout). Lacan escreve com palavras bonitas, porém de muita pouca didática, então vamos lá, o ser humano jamais irá conseguir preencher o vazio, pois esse vazio faz parte do que somos e somos infelizmente, pessoas incompletas.

Vivemos hoje em dia um impasse contemporâneo: consumo, performance e a recusa da falta em tempos de hiperconsumo, o mercado oferece bens e experiências como supostos tampões da angústia: “adquira, viaje, poste e sinta‑se completo”. Na esfera afetiva, relações são buscadas como promessas de fusão que dispensariam o vazio. Tais estratégias, entretanto, esbarram no limite estrutural descrito acima. Quanto mais o sujeito (a pessoa) persegue a plenitude, mais se confronta com a impossibilidade de alcançá‑la. O resultado é o ciclo de frustração, compulsão e, muitas vezes, sintomas depressivos.

Portanto, pensamos, o erro não está em desejar, mas em transformar o desejo em exigência de completude, como se o fato de TER algo fosse resolutivo ao buraco, completaria o vazio existente. Porém Como lembra Lacan, “só há causa para desejar porque há falta” Fingir que não há falta pode causar muito sofrimento, ou até mesmo pensar que a falta nao deve existir.

Como conviver com a falta sem de fato causar um enorme sofrimento? O primeiro passo é compreender onde ela se instaura, reconhecer e nomear, um trabalho que é feito de forma muito consistente na psicoterapia, principalmente na psicanálise. Reconfigurar, sublimar, transformar a falta em produções satisfatórias, engajamentos. Não é um trabalho fácil, é necessário desejo de sair do conforto, de trabalhar questões que machucam e incomodam de forma estrutural, identificar o indizível e criar pontes para o simbólico.

Lidar com o vazio implica, paradoxalmente, aceitar que ele nunca será inteiramente “lidado” no sentido de ser tamponado como disse no início do texto. A psicanálise de Lacan mostra que a falta não é um defeito a corrigir, mas a condição para desejar, falar e criar. O desafio contemporâneo é deslocar‑se da lógica de preenchimento para uma ética da incompletude: reconhecer o buraco, fazer dele causa de atos simbólicos e construir, na linguagem e nos laços, modos singulares de existir. Nesse movimento, o vazio deixa de ser abismo paralisante e se converte em ponto de partida para enfim a invenção e reconhecimento de si.

(*) Lia Rodrigues Alcaraz é psicóloga formada pela UCDB (2011), especialista em orientação analítica (2015) e neuropsicóloga em formação (2024). Trabalha como psicóloga clínica na Cassems e em consultório.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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