A infância mediada por telas: desafios, riscos e caminhos possíveis
A infância contemporânea é atravessada por telas. Desde os primeiros meses de vida, crianças interagem com aparelhos digitais em um contexto cultural em que a tecnologia se tornou parte integrante do cotidiano. Esse fenômeno altera profundamente a forma como aprendemos, nos relacionamos e percebemos o mundo. Quais são, então, as consequências desse novo normal e como podemos garantir que a tecnologia seja aliada no desenvolvimento infantil, e não um fator de vulnerabilidade?
Crianças nascidas nos últimos anos parecem nativas digitais: deslizam os dedos na tela antes mesmo de aprender a falar. Crescer observando pais e cuidadores utilizando o celular, assistindo a vídeos ou interagindo com o computador torna-se uma experiência naturalizada. É comum que o contato com dispositivos ocorra nos momentos em que os adultos estão ocupados, como durante deslocamentos ou períodos de espera. Com o tempo, essa interação se intensifica e se incorpora à rotina escolar por meio de deveres de casa on-line, vídeos educativos e plataformas de aprendizagem.
- Leia Também
- Metanol, o grande vilão. Mas, e os outros?
- O vazio das vidas ceifadas: o impacto do feminicídio em quem fica
Embora a tecnologia amplie o acesso à informação, seu uso precoce e excessivo pode afetar o desenvolvimento emocional, a atenção, o sono e os vínculos afetivos. A virtualização das relações reduz o contato direto com o outro, experiência fundamental para o amadurecimento psíquico e social. Sob a perspectiva moreniana, o brincar é uma das formas mais genuínas de expressão da espontaneidade e da criatividade humanas. Por meio do jogo imaginativo, a criança experimenta papéis, testa possibilidades e constrói identidade em relação ao outro e ao mundo. Quando a brincadeira é substituída por interações mediadas por telas, o espaço de criação e encontro espontâneo se reduz, e a criança passa a reagir a estímulos previamente programados, em vez de ser coautora da própria história.
O mundo físico, antes limitado pelo espaço e pela convivência, agora se expande em redes de conexão praticamente infinitas. Crianças que enfrentam dificuldades de interação no mundo real podem construir identidades e comunidades virtuais, participar de jogos e até obter reconhecimento sem que os pais tenham consciência disso. Ao mesmo tempo, conteúdos aparentemente inofensivos podem levar, em poucos cliques, a páginas violentas ou sexualizadas. Essa exposição pode dessensibilizar crianças e adolescentes diante da violência, fazendo com que cenas extremas deixem de causar impacto e passem a ser normalizadas. Muitos também se deparam, ainda na infância, com conteúdos pornográficos, comprometendo a compreensão sobre consentimento e aumentando a vulnerabilidade a diferentes tipos de abusos e violações.
Ao longo da história, a sociedade desenvolveu mecanismos de proteção para riscos físicos e morais. No ambiente digital, ainda estamos em processo de amadurecimento institucional e normativo. A supervisão informal, em que os pais acreditam que a criança está segura apenas por estar quieta diante de uma tela, não é suficiente. É preciso investir em políticas públicas, educação digital e orientações que envolvam família, escola e Estado, garantindo que a proteção no mundo virtual seja efetiva.
A infância mediada por telas exige uma postura ativa e colaborativa. A tecnologia pode ser transformadora ou alienante, dependendo de como é introduzida e regulada. Mais do que afastar as telas, é necessário fortalecer a presença humana, promover momentos de convivência desconectada, estimular o uso crítico e consciente e construir práticas que assegurem às crianças não apenas acesso, mas também segurança, autonomia e bem-estar.
(*) Bárbara Almeida de Espindola, doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura na Universidade de Brasília
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.