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O vazio das vidas ceifadas: o impacto do feminicídio em quem fica

Por Cristiane Lang (*) | 15/10/2025 08:15

Há dores que não cabem em palavras. O feminicídio é uma delas.

Quando uma mulher é assassinada por ser mulher, não é apenas uma vida que se perde — é uma ausência que se espalha. Um silêncio que grita. Uma ferida que se abre em todos que amavam, conviviam, dependiam dela. O feminicídio é o fim abrupto de uma história, mas também o início de uma dor coletiva que não cessa.

Em Mato Grosso do Sul, chegamos ao 30º feminicídio apenas neste ano. Trinta mulheres que tiveram seus caminhos interrompidos pela violência de quem dizia amar. Trinta famílias que agora convivem com o vazio, com a lembrança do medo, e com a difícil tarefa de seguir em frente carregando o peso da injustiça. Trinta ausências que escancaram que o problema está longe de ser exceção.

A dor que se espalha

O feminicídio destrói mais do que a vítima. Ele arranca o chão de filhos, mães, irmãos, amigos.

A morte violenta de uma mulher deixa rastros profundos — psicológicos, emocionais, sociais.

Os familiares convivem com a culpa do “e se?”, com o trauma das lembranças, com o desamparo diante da falta de resposta do Estado e da sociedade.

Há o medo que permanece, o luto que não termina, a raiva que não encontra reparação.

Para os filhos, especialmente, o impacto é devastador. Muitos crescem órfãos não apenas de mãe, mas também de pai — já que o agressor, em geral, é alguém próximo, muitas vezes o companheiro. O lar, que deveria ser sinônimo de abrigo, torna-se lembrança de terror.

Amigos e vizinhos, por sua vez, carregam o espanto e a impotência: “parecia um casal normal”, dizem — até que o machismo, tantas vezes disfarçado, revela seu rosto mais cruel.

O vazio que o sistema não preenche

Cada novo caso expõe as falhas de uma rede que deveria proteger.

Mulheres denunciam, pedem ajuda, mas nem sempre são ouvidas, acolhidas ou protegidas de forma eficaz.

A cada feminicídio, o Estado também mata um pouco — quando falha em prevenir, quando banaliza a dor, quando permite que denúncias se empilhem em gavetas.

E a sociedade, muitas vezes, também é cúmplice, quando silencia diante de agressões, quando julga, quando normaliza o controle e o ciúme como sinais de amor.

As marcas em quem fica

O feminicídio não termina com o sepultamento. Ele continua vivo na rotina de quem sobrevive:

Nas crianças que acordam à noite chamando por quem não volta.

Nas mães que visitam túmulos em vez de abraços.

Nos irmãos que carregam a indignação e a saudade.

Nos amigos que não conseguem esquecer o som da notícia.

Há famílias que desabam emocionalmente e financeiramente. Há casas que se tornam cheias de lembranças e vazias de vida.

E há, acima de tudo, uma certeza amarga: nada trará de volta quem foi arrancada pela violência.

O que precisa mudar

Combater o feminicídio não é apenas punir o agressor — é prevenir a violência antes que ela aconteça.

É criar políticas públicas eficazes, oferecer acolhimento psicológico, garantir que medidas protetivas sejam realmente cumpridas.

É educar meninos e meninas desde cedo sobre respeito, empatia e igualdade.

É transformar a cultura que ensina homens a possuírem e mulheres a se submeterem.

Também é essencial cuidar de quem fica. As famílias das vítimas precisam de acompanhamento psicológico, de apoio social e de um espaço seguro para elaborar o luto. Não basta chorar por elas — é preciso cuidar dos que foram deixados para trás.

Um grito por todas

Cada número em uma estatística representa uma história interrompida, um amor perdido, uma ausência que ecoa.

O 30º feminicídio em Mato Grosso do Sul não é apenas mais um caso — é um alerta. É o reflexo de uma sociedade que ainda precisa aprender que amor não é posse, que ciúme não é cuidado, e que silêncio nunca é proteção.

O vazio das vidas ceifadas não pode continuar sendo rotina.

Enquanto uma mulher ainda morre pelo simples fato de ser mulher, todos perdemos um pouco de humanidade.

(*) Cristiane Lang é psicóloga clínica.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.